A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

As Palavras e as Coisas

Somos senhores do silêncio que conservamos e escravos do ruído que produzimos



U
ma experiência ou sensação do nosso campo factual, enquanto tal, é uma realidade incontestável. Dispensa confirmação ou demonstração e é imune a qualquer tentativa de refutação. Não pode ser impugnado aquilo que irremediável e irrefutavelmente é. Tal como o cogito cartesiano, está para além de toda a objeção. Se sofremos uma dor de dentes, é inútil toda a dissecação intelectual que procure pô-la em causa.

Enquanto no campo do silêncio, do fenómeno subjectivo, esta realidade permanece pura e soberana. Está para além de toda a controvérsia. Mas quando a denominamos, quando lhe damos um nome, transferimo-la para o espaço público. Corrompemo-la inevitavelmente. Tornámo-la vulnerável à contenda e à disputa. Aquela realidade sem nome, na sua pureza e originalidade, não existia antes da sua manifestação. Mas quando lhe damos nome transferimo-la para um invólucro que lhe é preexistente e que tem uma realidade própria com a qual ela agora é coberta, adulterada, desvirtuada, conspurcada. Tal como o liquido adquire a forma do recipiente onde é introduzido, assim também as palavras dão determinada forma às emoções e sentimentos que procuram representar.

Cumpre fazer aqui uma distinção entre aquelas duas dimensões, isto é, a realidade em si mesma e a realidade enquanto simbolizada. O aviltamento de que falamos apenas atinge esta segunda dimensão. A realidade enquanto tal e em si mesma, permanece intacta e na sua pureza original.

A linguagem é um produto social. É uma realidade colectiva. Está construída para satisfazer as necessidades da sociedade onde ela emerge. Daí não poder dar conta de uma necessidade ainda não manifesta. Creio que é por este motivo que nos causa tanta estranheza a literatura mística e espiritual oriunda dos homens sábios da Índia e da China. O progresso do conhecimento e a expansão da consciência deverão ser acompanhados por um correspondente dinamismo da linguagem. Este dinamismo tanto se poderá manifestar num alargamento do significado de determinadas palavras, como no surgimento de novos termos que possam dar conta da nova realidade emergente (ou da expansão da consciência da realidade).

As palavras são algo de muito limitado e insuficiente relativamente à função que deveriam desempenhar ou que delas esperamos. Principalmente quando procuramos representar uma realidade que não pertence ao domínio do concreto objectivo e material, mas sim ao domínio psicológico, subjectivo e imaterial. É neste último campo onde se regista a grande ineficiência das palavras por não haver possibilidade de confirmar empiricamente e de forma inequívoca que os diversos conceitos são interpretados de maneira uniforme pelas diversas pessoas.

Ao escolher do mundo das palavras aquelas com as quais pretende simbolizar a sua experiência, uma pessoa comete equívocos que poderão anular completamente qualquer sentido que fundamente a existência do mundo verbal, uma vez que este deixa de cumprir a sua função. E o cumprimento dessa função é a condição cuja verificação é indispensável, ou na qual reside qualquer valor ontológico ou pragmático que se lhe possa atribuir. Uma pessoa não apenas comete equívocos ao escolher do mundo verbal as palavras com que pretende simbolizar a sua experiência, como poderá mesmo acontecer que daquele mundo ainda não façam parte as palavras que a poderão simbolizar. Neste último caso a pessoa irá colocar um nome a algo que ainda não o tem. O dar nome implica sempre identificação e a identificação é sempre produto do passado. Quer isto dizer que a pessoa está a ver numa coisa nova, desconhecida e sem nome, uma coisa velha, conhecida, com nome. Se a pessoa não tiver consciência deste facto, então poderá ficar enredada num processo de pensamento cujo resultado poderá ser uma total dissociação da realidade. Isto é uma coisa gravíssima quando se trata de fenómenos do campo psicológico porque as palavras deixam de ser utilizadas como uma representação da realidade para a passarem a determinar. Acontece assim porque certos conceitos acarretam já consigo uma determinada carga emocional, provocam já determinados sentimentos e reacções automáticas. Há uma inversão absurda da ordem ontológica: deixa de se partir da realidade para as palavras (silêncio) para se partir das palavras para a realidade (preconceito).

A forma mais complexa, paradoxal e absurda que uma frase possa ter, poderá ser na realidade a utilização mais inteligente  que se faz das palavras numa expressão. Se uma pessoa não quer atraiçoar verbalmente uma experiência de elevado grau de incomunicabilidade, a forma como mistura palavras numa tentativa de fazer a sua tradução verbal servindo-se dos nexos e símbolos de que pode dispor na sua língua, poderá parecer extremamente paradoxal e confusa. Se as palavras não podem expressar a sua experiência, então que se abstenha de o procurar fazer. E se o tentar comunicar, então que não entendam o que ela diga. Se a entenderem, a sua experiência terá sido atraiçoada na sua tradução; se a não entenderem, então terá sido eficaz e inteligente a sua comunicação. Perante uma realidade nova, desconhecida, o estado de espírito ou a atitude mais adequada é a humildade, a forma negativa no sentido socrático, e não a afirmação positiva.

Se uma coisa é nova, desconhecida, nada temos a objetar que seja criada também uma palavra nova para a simbolizar. É preferível a meter vinho novo em potes velhos. Se uma coisa não tem nome, então que seja descoberta em silêncio. Às palavras o que é das palavras; ao silêncio o que é do silêncio. O contacto com a realidade só acontece depois de transcendermos as palavras. Mais importante do que explicar as coisas é sentir as coisas. Para quê conhecer o que não se sente? É muito mais importante sentir o que não se conhece.


terça-feira, 4 de outubro de 2011

Paradoxos


Leio que me dizes que a verdade jamais me será trazida por um livro ou um guru Que tenho que a descobrir por mim mesmo. Isso foi o que fiz. Não acreditei em ti. Porque se acreditasse teria rejeitado o teu livro. E assim não me poderias ter feito compreender que a verdade não está no livro!
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Dizes-me para fazer silêncio e rejeitar a mente e o pensamento. Eu ainda te não compreendo. Mas vou ficar com este não-compreender. Porque se o quiser converter em compreensão terei que usar o pensamento. E tu dizes-me para ficar quieto e não pensar!


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Há já muitos mestres a escrever e a falar sobre aquilo que não tem nome, não pode ser posto em palavras e não se pode comunicar!


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D. Miguel Ruiz aconselhou-me a não acreditar em ninguém. Poderei acreditar no seu conselho?


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Falar daquilo de que se não pode falar é ainda procurar falar daquilo. Deixa-me então tentar não falar daquilo de que se não pode falar!

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Perguntas e Respostas - Quem Compreende o Quê?

    "O dilema não é que o individuo compreenda ou não compreenda. O dilema é o individuo."    -Tony Parsons 

Isto é para ser compreendido por quem compreende. E isto é para não ser compreendido por quem não compreende. Tudo está bem como está. Só o esforço para converter o que é noutra coisa está a mais. Se não compreendes, mas não te esforças para compreender, então compreendes! Eu não falo de nada que requeira compreensão. Não há aqui nada a alcançar. Eu estou apenas a endereçar um convite que pode ou não ser aceite. Um convite à imobilização da mente, do tempo, do pensamento. E isto é apenas um modo de estar, de ser. Não é uma compreensão que se alcança.

A verdade não depende dos esforços que fazes para a descobrir. Tu nada podes fazer para que a compreensão aconteça. E nada podes fazer para a impedir de acontecer. Simplesmente para! Abandona os teus esforços para compreender. Permanece nessa confusão e não-saber. Então alguma coisa poderá suceder. Mas saberás que tu de nada foste o autor.

Tu deleitas-te a observar aquele globo prateado que aparece no firmamento numa noite de luar. Mas eis que uma nuvem passageira vem ocultar a lua. Tu queres ter de volta o luar e podes esforçar-te para arredar a nuvem que agora o cobre. Mas eu apenas te convido a permanecer imóvel e a contemplar aquela nuvem. Ela também tem, afinal, a sua peculiar beleza. Tu não a convidaste nem podes fazer  que se dissolva. As mesmas forças que a trouxeram se encarregarão de a levar.

O esforço para atingir a experiência de um outro a partir das suas palavras e símbolos é inglório e inútil. É uma necessidade ilusória. Cada um tem o seu próprio caminho a percorrer. Somos todos únicos. A totalidade de que somos constituídos é formada por um conjunto de acontecimentos e experiências que representa uma configuração única e irrepetível. Aquilo que um indivíduo recorda e lhe é significativo, outro indivíduo esquece como destituído de significado. Cada um de nós faz os seus próprios sublinhados nos livros que lê. Um indivíduo fica indiferente  a uma frase que para um outro se reveste de profundo significado e o abala de uma forma vital.

Eu vejo algo. E porque o vejo e a partir desse algo brotam as minhas palavras. Tu ouves as minhas palavras. E com elas e a partir delas constróis algo. O que te garante que esse algo que construíste com as minhas palavras é o mesmo algo a partir do qual as minhas palavras foram construídas?

Podes continuar a fazer perguntas e ficar ou não satisfeito com as minhas respostas. Mas na verdade não há qualquer entidade que possa beneficiar dessas perguntas e dessas respostas. Tu julgas que precisas das respostas às tuas perguntas para poderes atuar adequadamente, para reagires corretamente à vida e aos seus desafios. Mas na realidade, quando estás plenamente presente e a resposta é adequada e completa, não existe a entidade que perguntava e se satisfazia ou não com as respostas. A entidade que faz perguntas e procura respostas é uma entidade que apenas existe no processo de perguntas e respostas. A entidade que obtém respostas só existe no processo de fazer perguntas. A libertação e a plenitude do teu ser não é conseguida pelas respostas às tuas perguntas. Tu já és livre, pleno, completo antes de obteres respostas às tuas perguntas, e és livre, pleno, completo, depois de as obteres. És plenamente livre e completo mesmo antes que qualquer pergunta, dúvida ou questão seja formulada.

Nenhuma pergunta requer resposta, porque a única resposta sempre consistirá no desaparecimento daquele que faz a pergunta. A tua existência plenamente desperta, plenamente iluminada, plenamente consciente, não tem qualquer necessidade de fazer perguntas e de obter respostas. Por mais respostas e conceitos que procures acumular, o teu ser real constituí-se de amor. E quando amas, o amor preenche-te completamente. Não sobra qualquer espaço para ti, para o ego, para a aplicação de conceitos e respostas. Ages de forma espontânea e natural. A mente é que se alimenta de problemas, por isso necessita converter em problema tudo aquilo em que toca.

Queres ser iluminado? Nenhum peixe sabe o que é a água. Nenhuma criança ainda pequena sabe o que é a naturalidade e a espontaneidade; nenhuma águia, cujas asas se abrem naquela infinidade azul com desprezo pela terra inteira, sabe o que é a liberdade.  Aquele que é generoso desconhece a generosidade. A autêntica beleza nunca resulta da vaidade.   

domingo, 17 de julho de 2011

Forma e Vazio - Mundo e Consciência



O ser ou existir implica a consciência. Para um objeto inerte não há qualquer diferença entre existir ou não existir. A sua existência ou inexistência faz diferença apenas para a consciência na qual ele se manifesta. Eu, consciência, sou auto-consciente, o objeto não o é. Daí que para o objeto não há qualquer diferença entre ser ou não ser, entre existir ou não existir. O objeto que eu presencio, tal como ele me aparece, não tem uma existência separada das próprias qualidades com que a mente pode ver e conceber. É apenas um conjunto de sensações que experimento e com as quais o identifico. Estas sensações provam a minha existência, não a do objeto. O objeto existe apenas para a consciência que o percebe, não existe para si próprio. Tal como é assinalado pela filosofia Vedanta e pelo budismo, o mundo manifesto não tem qualquer realidade intrínseca, não existe de forma autónoma e independente. Só a consciência é auto-consciente. Só a consciência existe de forma absoluta. O mundo tem existência meramente relativa e conceptual. Não se trata de estabelecer aqui alguma conclusão, solipsista ou de outro género qualquer. Toda a conclusão equivale a entrar num barco destinado a naufragar. Nenhuma conclusão se requer. Apenas constatamos que a separação entre interior e exterior, espírito e matéria, sujeito e objeto ,não passa de uma suposição arbitrária. Tudo surge num mesmo e único espaço consciente, em si mesmo vazio, informe, ilimitado, omnipresente e atemporal. Cai a ilusão da dualidade, a ilusão da separação entre nós e o mundo. O mundo que percebemos não pode existir sem a consciência que o percebe.

Procurar o que somos realmente para além da experiência transitória, é como ir removendo sucessivamente as cascas de uma cebola. Quando atingimos o centro, aquilo a que chegamos é coisa nenhuma, um perfeito vazio. Mas este vazio não é um vazio feito de nada, mas sim de consciência. É um espaço infinito de silêncio e disponibilidade onde todo o universo se manifesta. Este espaço consciente é o que nós somos. Nada mais, nada menos do que esta consciência. A afirmação contida nos antigos Upanishades, "Tat Tvam Asi" (Tu és Isso), é a verdade para a qual apontam todas as autênticas tradições espirituais e religiosas que afirmam a não-dualidade da realidade. Por isso diz  Meister Eckhart num dos seus sermões: "O olho com que vejo Deus, é o mesmo olho com que Deus me vê; o meu olho e o olho de Deus são um único olho, um único conhecer, uma única visão, um único amor." A existência indubitável da consciência constitui o ponto de partida e o ponto de chegada de toda a auto-inquirição e de toda a jornada em busca de Deus, do auto-conhecimento e da natureza da realidade.

Querer experimentar a consciência, o vazio, o espaço, de forma abstrata e independente dos objetos ou das formas que nele aparecem, é como procurar ter a percepção da luz separadamente dos objetos que ilumina. Esta é uma tarefa inglória, uma impossibilidade. Tal desejo surge em virtude da constatação da permanente mutabilidade dos objetos. Mas a consciência, aquele espaço infinito, aquele vazio original, surge sempre ligado aos objetos ou formas da experiência transitória. O permanente surge sempre ligado ao impermanente. A consciência e o seu conteúdo existem de forma unitária, como uma unidade inseparável, uma totalidade que só de forma verbal e artificial pode ser dissociada ou dividida. Sem a luz os objectos não poderiam ser presenciados. Mas são os objectos que, de alguma forma, nos conscientizam da luz que os ilumina e transcende. Nós não vemos a luz, vemos apenas os objetos por ela iluminados. Mas o facto de serem vistos torna óbvia e irrefutável a implícita presença dessa luz ou consciência que os percebe.

Esta presença consciente, não sendo um objeto de experiência, é no entanto uma realidade mais sólida e evidente do que qualquer objeto experimentado. Apenas a consciência é real. Só ela existe de forma indubitável e permanente. A realidade que qualquer manifestação fenoménica torna inegável não é a do  objeto percebido, mas sim a da consciência em que ele aparece. Esta implícita certeza é igual à primeira descoberta de Descartes. Todo o objeto aponta para a indubitável certeza da existência do sujeito. E nenhum objeto pode ser concebido como tendo uma existência real, autónoma e independente da sua manifestação na consciência que o percebe. Quando se diz que o mundo fenoménico é irreal, ilusório ou aparente, não devemos ver aí nenhum mistério transcendental que temos de desvendar. Significa, na perspetiva budista da realidade, a impermanência e interdependência de todos os fenómenos. Por isso só o repouso na vacuidade torna possível a infinita flexibilidade que nos permite estar em sincronia com a célere e permanente mudança do real.

Filosofia, intelecto e espírito

Nenhuma filosofia, por mais rigorosa, perfeita e elaborada, pode cumprir aquilo a que se propõe: abarcar a totalidade. Porque toda a filosofia é construída e armazenada no intelecto. E o intelecto não passa de um fragmento da totalidade. O intelecto não pode abarcar a totalidade. É a totalidade que integra o intelecto. Qualquer filosofia, por mais amplo e extenso que seja o campo abordado, será sempre algo semelhante a uma corrida num tapete rolante. Por mais kms que façamos, a distância percorrida estará sempre confinada a um espaço limitado. Quando percebemos isto, então a mente, o intelecto passa a funcionar não já como um armazém, mas apenas como um instrumento. Um instrumento ao serviço do espírito em vez de ser um empecilho. Quando a nossa ação se origina desde a perspetiva desta totalidade, então a utopia, o paraíso deixa de ser elaborado e formulado – passa a ser vivido! Talvez haja uma considerável redução do número de volumes pretendendo descrever a sociedade perfeita e de métodos e sistemas pretendendo criar o paraíso, mas teremos uma vida infinitamente mais rica, plena e satisfatória. Deixaremos de nos preocupar com a construção da sociedade perfeita. O mundo seguirá o seu caminho entregue a ele próprio. "Quem procura modificar o mundo, vejo, não o conseguirá. O mundo, vaso espiritual, não pode ser modificado”, diz-se no Tao Te King.

Alguém objectará: e o que fazeis vós ao escrever isto? Porventura não estais a filosofar? Respondo que isto não constitui qualquer excepção ao que foi dito acima. Isto não passa de palavras. Esta mensagem será abandonada por quem perceber plenamente o seu significado. Tal como se abandona um barco depois de alcançarmos a outra margem do rio ou se deita fora um mapa uma vez chegados ao local que ele indicava. Isto não passa de palavras. Mas Aquilo donde elas surgem poderá ser conhecido por quem estiver disposto a abandoná-las para abraçar Aquilo para o qual elas apontam. Cada palavra, cada frase aqui derramada não passa de sucessivas e renovadas tentativas para que o leitor possa ser levado a vislumbrar algo que se encontra além das palavras, da mente e do pensamento. Mas isso nenhuma quantidade e nenhuma forma de misturar palavras poderá adequadamente fazer.

Os diversos textos aqui oferecidos não representam diversos estágios ou etapas para alcançar um objectivo no final. Não representam as diversas partes de um todo à semelhança das peças de um puzzle. Em qualquer ponto deles se pode atingir plenamente a totalidade da mensagem que procuram transmitir. Tal como a água que uma criança apanha na concha das mãos contem já todo o segredo do oceano, a essência da mensagem aqui contida pode ser plenamente captada logo desde o seu início. Porque na realidade ela já está presente mesmo antes da primeira palavra aqui escrita. E é a mesma mensagem perene e essencial, comum aos místicos e profetas de todos os tempos e que se encontra no coração de todas as grandes religiões.

Não é minha intenção ser exaustivo. Não é necessário ser exaustivo para dizer tudo o necessário sobre um assunto. Não é necessário percorrermos um roteiro de todos os livros e mestres que trataram o tema. Ser exaustivo aqui seria apenas percorrer as diversas formas em que foi expressado o essencial. Mas esse é um esforço desnecessário. Não nos interessa mostrar erudição mas apenas apontar uma realidade fundamental, a verdade que tem sido descoberta e expressada de diversas formas. Não há nada mais fácil (e também mais inútil) do que gastar mil páginas com uma informação que está contida apenas em dez ou vinte. O que está a mais torna-se distração e a distração é ruído que impede a eficácia da transmissão. Esta não é uma mensagem para ser guardada. Se for corretamente recebida e compreendida, então ela não será conservada, mas assimilada. E tudo aquilo que é assimilado desaparece no processo de assimilação.

Devo dizer que é um exercício inútil e um desperdício procurar aqui inconsistências e contradições. Esta mensagem passa completamente ao lado daquele que dela se aproxima munido de espírito académico. Aqueles que veem aqui mais uma oportunidade para o fútil jogo de descobrir e vaidosamente denunciar paradoxos e inconsistências, sofrem precisamente da ilusão e do sono de que esta mensagem os procura despertar. Consistências e contradições, confirmações e refutações, fazem parte da dimensão que aqui somos convidados a abandonar. As palavras utilizadas e a forma em que elas são aqui colocadas não têm em vista a construção de um sistema consistente e irrefutável. Não se procura aqui dar satisfação ao intelecto mas antes ver para além do intelecto. Não se procura aqui construir mais um sistema para ser endeusado e sacralizado ou mais uma ideologia pela qual matar e morrer. Se o intelecto fosse o instrumento da felicidade que procuramos, já há muito teríamos estabelecido na terra o paraíso.

Se nalgum momento da leitura destas palavras dás contigo a lutar para compreender, a comparar ou procurar conciliar com o que julgas saber, a esforçar-te no sentido de atingires algo que elas possam ocultar (o que não passará de uma projeção da tua própria mente), então deixaste de estar em sintonia com a mensagem que elas procuram transmitir. Porque esta mensagem é precisamente um convite a renunciar a seja o que for que estás a procurar alcançar. Essa tua atividade, esse teu buscar, esse esforço para compreender e alcançar, o único instrumento que possui é a mente, o pensamento. Mas esta mensagem é um convite ao abandono da mente e do esforço volitivo do pensamento. És livre para aceitar ou não este convite, mas se o quiseres aceitar, terás que renunciar a qualquer especulação que procure antecipar aquilo que está para vir. Tens que estar disposto a mergulhar na incerteza e no desconhecido. Experimenta! O que tens a perder? Só tens esta vida para viver. E podes estar a ficar à margem do que de mais importante ela tem para te oferecer.

Claro que procurar garantias, procurar saber o que será a vida sem a persistente atividade do intelecto, sem o constante esforço da mente e do pensamento, é como um peixe procurar conhecer a experiência de uma cabra de montanha, ou esperar que um cadáver se possa pronunciar sobre o conforto do seu caixão. Afinal toda a especulação, toda a imaginação e antecipação se encontram na esfera da mente. Mas aqui a mente não tem qualquer participação. Não podes usar a mente para conhecer o que se encontra além da mente. Temos medo de abandonar um lixo que agora nos parece precioso, apenas porque não vemos a imensidão do que nos espera após esse abandono. Mas a verdadeira insanidade, como Einstein advertiu, é agir sempre da mesma forma e esperar resultados diferentes.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Sou Livre!



NÃO ME LIXEM!

                                              
       SE EU NÃO FOR EU, QUEM O SERÁ POR MIM??

  O segredo consiste em recuperar a inocência que nos roubaram!
Não é difícil. Afinal nunca a havíamos perdido!                  

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Ser

SER... APENAS SER!
                                                   

Nada que interpretar, julgar ou conhecer!


quarta-feira, 18 de maio de 2011

O Silêncio e as Palavras - Crença e Realidade


“O silêncio é a única linguagem capaz de expressar a totalidade da verdade!"  -Ramana Maharshi                                                                                 
A realidade do Ser e existir está antes e além de qualquer formulação conceptual. A falsidade e a ilusão é que dependem de conceitos e de crenças. A realidade do que é e do que existe não depende de crença ou formulação verbal. Qual a necessidade de crença? Só o que é falso necessita de ser suportado por crença. O que é real mantém-se por si mesmo. Na ausência de crença, a realidade não deixa de ser o que é. Apenas o que é ilusório desaparece. Podes não acreditar na gravidade, mas não é por isso que deixarás de te despenhar se saltares de um avião sem para-quedas. A terra sempre girou em torno do sol, não passou a fazê-lo somente depois de Copérnico ou Galileu. Não precisas de saber o nome do rio para nele poderes nadar. A autêntica realidade encontra-se além do verdadeiro e do falso. Estes conceitos apenas dizem respeito a frases e proposições. Mas a realidade é anterior, transcendente e independente da sua formulação verbal. A mentira não tem qualquer forma de subsistência para além da dimensão verbal. Não há qualquer necessidade de combater a mentira. Temos apenas de iluminar a verdade. Na ausência de palavras não subsiste a mentira. No silêncio apenas a realidade está presente. Na ausência de nomes e palavras a mentira encontra-se desprovida do único alimento que a sustenta. O silêncio apaga a mentira. Faz com que a verdade brilhe no seu máximo esplendor. Purifica a visão da realidade.

É um esforço inútil e é completamente ilusório procurar sustentar uma batalha contra o ego. O ego não é uma entidade. É apenas uma atividade. Tão efémera e intermitente como qualquer outra atividade. Procurar combater ou eliminar o ego é atribuir-lhe realidade. À semelhança daquelas pessoas que se munem de amuletos e se dedicam a exorcismos e rituais, alimentando dessa maneira os próprios fantasmas que julgam combater. O ego consiste precisamente neste processo de criar ilusões. Travar uma guerra contra o ego é como utilizar gasolina para apagar um fogo. Não existe tal coisa como um "ego" separado das atividades que o sustentam. E a luta contra o ego é precisamente uma dessas atividades. O próprio pensamento é sustentado pelo esforço que o procura eliminar.

O ego não é nada mais que desejo e aversão, escolha e rejeição, memória e interpretação. Não existe um ego que atua. Estas atividades são elas mesmas o próprio ego. Na ausência de pensamento, quando a mente está em silêncio, não existe tempo, não existe condicionamento, não existe ego. Aquele que se procura libertar só existe na cela de uma prisão. O escravo não se torna livre. A liberdade é o findar tanto do escravo como da prisão. A liberdade não tem qualquer relação com a escravidão. O escravo que se procura libertar nunca deixará de ser escravo. Tanto o escravo como a liberdade que ele projeta e idealiza fazem parte das grades da prisão.

É por isso que a libertação é tantas vezes apresentada como um processo imediato. Os mestres Zen são os mais pragmáticos, os mais diretos e menos pacientes a este respeito. Não têm paciência para discursos, racionalização e argumentos. O que fazem é renunciar a todo o conhecimento discursivo, a toda a especulação e esforço, para se estabelecerem na gratuitidade e simplicidade deste momento eternamente presente, a realidade atemporal do aqui e agora.

Se nalgum momento a leitura destas linhas suscitar alguma dificuldade ou esforço de compreensão, isso mais uma vez é devido ao desejo de conhecimento, de certeza e segurança. É preferível renunciar a seja o que for que estamos a procurar obter do que converter isto num problema a resolver. Tudo o que esse esforço e essa atividade poderá conseguir será meramente uma satisfação momentânea. Enquanto procurarmos satisfazer esse desejo de segurança, ele terá que ser satisfeito uma e outra vez indefinidamente. O problema terá que ser resolvido repetidamente e jamais alcançaremos a satisfação permanente. Porque a satisfação do desejo de segurança é sempre momentânea, tem validade a prazo. Nada de duradouro e permanente pode surgir da atividade do pensamento. O que um pensamento constrói, outro pensamento pode destruir. A própria mente tem uma existência intermitente.

Havia um homem que a intervalos regulares polvilhava com um certo pó todas as divisões da sua casa. Quando lhe perguntaram porque o fazia, respondeu: «É para afastar os fantasmas e espíritos malignos!». «Mas aqui não há fantasmas ou espíritos!», disseram-lhe. «Claro!», respondeu o homem, «porque o pó os mantém à distância!». Enquanto procurarmos satisfazer o anseio de certeza, jamais saberemos se essa necessidade é real ou ilusória.

Enquanto julgarmos que precisamos da experiência e do conhecimento para respondermos adequadamente aos desafios e circunstâncias, teremos medo de dispensar todo o nosso aparato conceptual. Mas enquanto não o fizermos, jamais poderemos saber se ele é ou não necessário. Jamais saberemos o que é a liberdade e o amor. Através dos mecanismos do medo e das atividades por ele engendradas, jamais poderemos encontrar a paz e a felicidade que buscamos.

domingo, 8 de maio de 2011

Ser e Vir-a-Ser


O pensador faz parte do pensamento e não subsiste quando este termina. O pensador só está presente enquanto decorre o processo de pensamento. É uma entidade ilusória à qual o pensamento atribui permanência. Na realidade não existe pensador mas apenas pensamento. Na ausência de pensamento permanece apenas o Ser ou Consciência impessoal que não beneficia de qualquer aquisição ou renúncia elaborada pelo pensamento. A entidade que utiliza o pensamento para se auto-aperfeiçoar, para se engrandecer ou diminuir, para atingir ou alcançar, é uma entidade ilusória, uma projeção ou invenção do pensamento. Não tem maior realidade ou permanência que o próprio pensamento. Quando te criticas ou julgas a ti próprio, és vitima de uma ilusão. Crias dentro de ti uma divisão que na realidade não existe. É na desmontagem desta ilusão básica de dualidade e separação, que consiste aquele insight a que chamamos "despertar". Esta compreensão põe fim ao esforço volitivo do pensamento e promove a integração interior. O importante é não lutares contigo próprio. O teu ser é uno e não dual.

O que significa dizer que não há ninguém para compreender? Ninguém para se libertar? Ninguém para se iluminar? Significa em essência que é artificial e ilusória a separação entre a ação e o agente, entre o pensador e os seus pensamentos, entre o sujeito observador e o objeto observado. É inútil e ilusório estabelecermos dentro de nós mesmos uma fragmentação ou divisão em que uma parte procura consertar ou aperfeiçoar a outra. Tal como é ilusório procurar abstrair da compreensão uma entidade que compreende.  Este esforço está condenado ao fracasso. A entidade que recorda e avalia, que procura reter ou recuperar, não existe no exato momento da experiência. O experimentador e a experiência constituem uma unidade. Não existe um experimentador permanente separado das suas experiências transitórias. Mas o viver e experimentar permanece em meio à transitoriedade de todas as experiências.

Eu agora compreendo claramente a futilidade do apego e do esforço para reter a compreensão. Mas é inútil fazer estes registos tendo como motivação o desejo de tornar permanente esta compreensão. Não devo converter isto numa ideia a reter para servir de guia na ação. Eu não estou a produzir uma receita que me garanta a repetição desta claridade e de futuras compreensões. Eu não tenho o controle; de nada sou o autor. A compreensão vem a mim e apazigua a minha mente assim como os raios de sol aquecem a minha pele. Eu não sou o agente que deliberadamente faz e provoca aquele aparecimento. Apenas o vivencio e usufruo. É uma bênção gratuita. Tudo o que é verdadeiramente grandioso e significativo é gratuito. Não pode ser nada que eu tenha merecido ou conquistado. Por isso a vida do sábio é livre de esforço, de volição e das complicações do pensamento egocêntrico. O sábio vive com a mesma simplicidade e alegria, com a mesma espontaneidade e confiança de uma criança no seu estágio pré-moral.

Eu não posso através do esforço volitivo do pensamento, ressuscitar um estado em que o desejo, o esforço e o pensamento se encontravam ausentes. A compreensão surge do silêncio, brota da paz e do vazio. O importante é esta paz e este vazio no qual surge a compreensão. Ao procurar reter a experiência da compreensão, esse desejo constitui-se num empecilho e num obstáculo àquele vazio, àquela paz e quietude em que a compreensão pode desabrochar. "Não podemos reter a compreensão  de modo a garanti-la continuamente, afirmava Krishnamurti, o que tem continuidade não é o real; é simplesmente um hábito". Por isso dizia que "a verdade vem sem chamamento e nos surpreende como um ladrão". Não devemos recear morrer para todas as nossas experiências porque na verdade todas elas têm um findar. E a iluminação ou despertar não se constitui em qualquer excepção. A renuncia e desapego tem que ser absoluta e incondicional. A entidade que se liberta só existe enquanto não há liberdade; a entidade que se ilumina dissolve-se na iluminação; aquele que desperta desaparece no próprio despertar.

Toda a atividade egocêntrica, toda a preocupação em torno da própria pessoa, todo o esforço visando o auto-aperfeiçoamento, é um roubo àquela disponibilidade, àquele espaço de atenção e silêncio necessário para podermos receber a vida sempre imprevisível que acontece à nossa volta e da qual participamos. E esta atenção ou consciência, este espaço de disponibilidade e silêncio não precisa de ser construído, fabricado ou produzido através de qualquer esforço volitivo da nossa parte. Ele já é inato em nós, ou antes, é aquilo que realmente somos e jamais podemos perder. Não nos apercebemos dele apenas devido à distração que constitui a atividade egocêntrica do pensamento. Não o podemos converter num estado a realizar ou meta a atingir. É paradoxal mas só o vivenciamos verdadeiramente quando renunciamos ao desejo de o obter. Esta renúncia e o silêncio que a acompanha expurga a realidade de tudo aquilo que lhe é alheio. Liberta o nosso ser verdadeiro daquilo que é falso e ilusório. Nas palavras de Fernando Pessoa: "A renúncia é libertação; não querer é poder".    

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Esforço e Renúncia



"Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu!" - F. Pessoa 
"Quando atingires o topo da montanha, continua a subir!" -Provérbio Zen 

"Cogitaciones volant, conscientia manent!" (os pensamentos voam, a conscência permanece!). 


Que procuras tu reter? Ou alcançar? Ou recuperar? Ou compreender?... Renuncia ao desejo de conhecer, ao teu anseio por certeza e segurança. Simplesmente abandona e confia. Não temas o silêncio. Não receies morrer. Só o que é ilusório desaparece. O que é real nunca deixa de estar presente. A esponja apaga todos os riscos, mas o quadro não é apagado, o quadro permanece. Quando no fim do filme se apaga a luz do projector, a tela permanece intacta, pronta a receber o próximo filme. O homem sábio constantemente morre para todas as experiências. A liberdade do sábio consiste numa permanente atitude de renúncia, desapego e desprendimento. Sabe que o silêncio jamais será vazio! 

 Para quê querer guardar a verdade na memória ou num livro sagrado?... Se ela está eternamente escrita no Universo! A verdade é uma presença silenciosa e o teu acesso a ela é incondicional. Estamos sempre imersos na verdade. A mente sob a forma de esforço e pensamento é que é isolante e separativa. Aquilo que precisa de ser retido, capturado ou recuperado não pode ser a verdade. A realidade mais autêntica e essencial não pertence ao campo do impermanente e transitório. Portanto, se algo se foi, deixa que se vá. Renuncia ao pensamento volitivo. Não te esforces por reter ou recuperar. Aquilo que requer esforço, apego e volição não tem qualquer importância ou valor. Qualquer coisa que adquiras acabarás por perder. O que precisa de ser retido por ação da vontade e do desejo, terá que ser repetidamente capturado, uma e outra vez, numa atividade extenuante e num inútil desperdício de energia. Encontrar o que desejas, nunca passará de uma satisfação temporária destinada a desvanecer-se novamente.

 Para quê desperdiçar esforço e energia tentando compreender, possuir ou conhecer? Tudo o que o pensamento constrói está destinado a desaparecer. É como um desenho na areia à beira-mar que as ondas inevitavelmente acabarão por lavar. Aquele que utiliza a descrição e a palavra a fim de se apropriar da experiência é ele próprio de natureza impermanente e transitória. É apenas um atributo do pensamento e não uma entidade que lhe sobreviva. Não tem qualquer realidade para além daquela que o pensamento lhe confere. Não passa de uma entidade fictícia resultante do desejo de segurança e da busca por repetição e permanência. A sua realidade é apenas aparente e ilusória. Surge e desaparece com o próprio pensamento que a criou..

Se um pensamento se foi, porque te esforças por o recuperar? Sendo a sua natureza impermanente, que diferença faz para ti depositá-lo numa folha de papel? A folha jamais terá sensações! É preferível renunciar à luta e ao esforço, à vontade de possuir e controlar. Relaxa e descansa! Aquilo que for realmente importante não deixará de te visitar quando for oportuno. Aquilo que a circunstância requerer, ela própria te irá prover. O importante não é possuir a verdade cristalizada num livro ou na memória, mas antes manter uma mente tranquila, desperta e vigilante, capaz de a refletir em todos os momentos. Que importam as palavras se o espírito por trás delas se encontrar ausente?... E se o espírito está presente, para quê as palavras?

 Por mais extático, sublime ou inspirado que seja um estado subjetivo, as palavras jamais o poderão captar, conservar ou transmitir. Todas as palavras sofrem das mesmas limitações. Por mais intensa que seja uma vivência subjetiva, a sua objetivação ou expressão em qualquer forma deixa sempre de fora aquela vivência. Vemos o riso da criança, não a sua alegria. Ouvimos a música que sai do piano, não a que se encontra no coração do pianista. Nenhum quadro de Van Gogh substitui o seu olhar. Nenhum Sermão do Monte nos pode transmitir a visão de Cristo do reino dos céus. A palavra e o pensamento brotam dum silêncio e dum vazio que a palavra e o pensamento jamais poderão capturar ou substituir. Não são as palavras que dão vida ao espírito, é o espírito que dá vida às palavras. A subjetividade objetivada é sempre ilusória, pretende atribuir a um objeto aquilo que é inerente ao sujeito.

 A busca conduz inevitavelmente à frustração e desencanto uma vez que todas as experiências e estados de consciência serão sempre transitórios e passageiros. Se compreendes que tudo é impermanente, então nenhum estado tentarás produzir, nenhum prazer desejarás reter, nenhuma experiência conservar. Paradoxalmente o nosso acesso àquilo que é realmente importante, precioso e significativo não requer qualquer esforço. É uma dádiva gratuita, sempre disponível e presente. Pede apenas que a aceitemos. Requer apenas a nossa presença, apenas que estejamos vivos. O nosso cepticismo, a nossa busca, a nossa inveja e avidez é que nos cega para aquilo que nos é mais intimo que o próprio respirar. Algo que da nossa parte apenas requer aceitação e silêncio. O ruído do pensamento jamais o poderá compreender. A mente jamais o poderá contactar. O que sempre buscámos é na verdade a única coisa que jamais perdemos.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Mestre e discípulo

A maioria dos mestres e gurus fazem atraentes discursos sobre a beleza da comunhão com Deus, o ser uno com o universo e o êxtase da vida livre da tirania do ego. Fazem-no à semelhança de alguém que, das águas frescas de um rio numa tarde de calor, fala para os que se encontram na margem e descreve a maravilhosa sensação do contacto com a água. O verdadeiro sábio é aquele que sem pronunciar uma palavra te agarra por um braço, te puxa para dentro da água e deixa que tu mesmo descubras essas sensações. Quem está numa prisão não quer brilhantes discursos sobre a vida ao sol e ao ar livre. O que quer é um túnel ou uma ponte que o tire dali para fora. Imagina que estás à beira da morte por inanição. Um homem acerca-se de ti fazendo maravilhosas descrições da comida,  explica-te todo o processo biológico da assimilação dos alimentos, a circulação do sangue e o funcionamento do aparelho digestivo. Depois fica exasperado por verificar que morreste antes de ter concluído. Um outro, simplesmente te apoia a cabeça nos seus braços e te leva à boca água e alimento. Qual deles foi para ti a ajuda mais essencial?

Os mestres espirituais, os gurus, os "despertos" e "iluminados" podem ser infinitamente bem-intencionados ao falar e ao escrever os seus livros. Mas a verdade é que involuntariamente podem alimentar nos discípulos precisamente aquilo que cumpre eliminar: a actividade do ego, da busca e do desejo. O guru ou o mestre espiritual, pode ter-se desembaraçado do ego e ter acedido ao ser autêntico, puro, essencial e não condicionado. Mas quando põe em palavras a sua experiência, desperta em quem o ouve o desejo de aceder à mesma realidade. Podem querer eliminar a atividade egocêntrica mas o que fazem é apenas dar-lhe uma nova forma, uma nova direção. O ego não deixa de ser o que é apenas porque muda o seu objecto de desejo. Um mestre pode, porque se libertou do desejo e da atividade do ego, experimentar um estado de ser que pinta com as cores mais maravilhosas. Mas a verdade é que ao dar nome à sua experiência, ao pô-la em palavras perante um auditório, o que faz involuntariamente é espetar neste o aguilhão da inveja, contribuindo assim para fortalecer precisamente o que pretende matar.

Aquilo que é fruto da naturalidade e da espontaneidade não pode ser transformado em objecto de desejo. Não pode ser colocado no fim da estrada como uma meta ou objectivo a atingir. O mestre ou guru não tem que exibir perante o discípulo a beleza e o êxtase de um estado futuro que supostamente poderá alcançar. O que ganha o discípulo com essas descrições? A ajuda eficaz seria aquela que volta a atenção para o estado real do discípulo. Aquela que lhe permite tomar consciência das atividades ilusórias da mente e do desejo. Aquela que lhe mostra como ele é o seu próprio carcereiro. Que lhe permite tomar consciência de que o seu sofrimento, a sua ansiedade e o inferno que experimenta não é mais do que um produto da sua própria fábrica mental. Apenas disto é que se deve consciencializar e apenas sobre isto é que deve despertar. O que vier depois dessa libertação, virá, e ele cá estará para o receber. Não tem que ser previamente informado e assim transformá-lo num objectivo, numa meta a alcançar e num desejo a satisfazer. Se o que o mestre ou guru faz é despertar-lhe esta atividade do desejo, seria preferível não os ler ou escutar, pois longe de lhe serem benéficos são antes prejudiciais.

O mestre mais eficaz e compassivo estende ao discípulo uma mão que representa uma ajuda inteligível desde a sua margem do rio (do discípulo). Se apenas se compraz numa espécie de masturbação verbal a partir da margem em que se encontra (o mestre), então de nenhuma utilidade poderá ser. O discípulo não tem que ser exposto a belas descrições do paraíso e da "vida espiritual" que o aguarda após a libertação do ego. Quando já não funcionar através do ego, ele próprio poderá fazer essas descrições. E talvez até encontre formas mais belas e sublimes de o fazer e expressar. Enquanto sob a tirania do ego, essas descrições de nada lhe servem. Liberto dessa tirania, elas são-lhe totalmente supérfluas.

A principal barreira que o discípulo experimenta na sua relação com o mestre tem a ver com a  dificuldade em se colocar na mesma perspetiva e ponto de vista. Mas frequentemente o mestre comete o erro de não se saber colocar no lugar do discípulo. O mestre encontra-se numa dimensão diferente e muitas vezes não sabe, ou não procura, descer ao nível do discípulo e estender-lhe uma ajuda compreensível desde o ponto de vista deste último. Fala utilizando uma linguagem que só é compreensível para quem já não precisa dela.

sábado, 30 de abril de 2011

Introdução

Este blogue nasce da vontade de partilhar reflexões acerca daquilo que podemos denominar Sabedoria Perene, Filosofia Advaita e Budismo Zen. Estes conceitos ou quaisquer outros serão aqui utilizados com uma função meramente instrumental ou pragmática. Não estamos a fazer ciência ou filosofia. Desde que as palavras sirvam para nos remeter àquilo de que estamos a falar é quanto basta.

Os textos aqui derramados tratam principalmente de problemas levantados pela formulação verbal ou transmissão da compreensão. Não nos ocuparemos aqui da divulgação daquelas filosofias (vamos chamar-lhes filosofias, uma vez mais, por motivos pragmáticos da comunicação). Não iremos transcrever os textos em que ela é exposta pelos mestres Zen e Advaita. Pelo menos não é esse o objetivo principal. Existem já na internet bastantes blogues temáticos que familiarizam o leitor com os seus textos e autores fundamentais. Os comentários aqui deixados irão antes girar em torno de uma questão essencial, primordial e decisiva que é o problema da comunicação daquelas filosofias, bem como problemas que têm a ver com a comunicação de modo geral.  No entanto não desejaria definir de forma muito rigorosa e antecipada a temática do que aqui se poderá encontrar. Por um lado porque desejo estar aberto e permanecer fiel à minha liberdade de pensar e escrever. Por outro lado porque não quero definir ou limitar à partida qualquer categoria específica de pessoas a quem o que escrevo possa interessar. Aquilo que escrevo diz respeito à busca da verdade, à vida e ao viver na sua dimensão humana enquanto tal.

Há algumas ideias cuja expressão mais romantizada e obscura costuma suscitar, em vez de esclarecimento, maior perplexidade e confusão. Há afirmações que fazem parecer o "despertar" ou "iluminação" qualquer coisa de transcendente e excepcional, uma experiência quase miraculosa ou sobrenatural pela qual alguns seres foram bafejados e que nós invejamos. Se assim fosse não faria qualquer sentido procurar comunicá-la, nem para nós faria qualquer sentido procurar compreendê-la. Somos seres humanos comuns que partilham da mesma humana natureza. A nossa experiência nada tem de transcendente ou sobrenatural. O mágico e o miraculoso não nos interessam.

De qualquer modo é importante ficarmos cientes de que qualquer forma de expressão verbal representa apenas uma tentativa de comunicar, uma formulação hipotética, uma possibilidade entre outras. Por isso estou dolorosamente consciente das limitações de seja o que for que aqui possa ser lido. Ao procurarmos comunicar estamos forçados a utilizar este instrumento que pela sua natureza é também o principal produtor de ilusões. A palavra, o símbolo é alheio à realidade, não é a coisa que representa. Por isso é importante ter presente um conselho dado por Misson, um filósofo desconhecido da antiga Grécia: "Indaga as palavras a partir das coisas e não as coisas a partir das palavras".

Porque razão apesar de tantos livros e mestres continuamos sem a iluminação e plenitude que procuramos? Porque razão na nossa busca por esclarecimento e compreensão nos vemos assaltados por tantas perplexidades, dúvidas e contradições? Porque razão este esforço constantemente se revela tão frustrante como a atividade de uma criança procurando ultrapassar a própria sombra que sempre se lhe adianta e escapa?

Algumas teses fundamentais poderão contribuir para elucidar a perspetiva do autor e serão desde já enunciadas:
  • Há uma contradição ou oposição inevitável entre o desejo de certeza e segurança e a própria estrutura da comunicação verbal. Nenhuma formulação verbal nos poderá transmitir a segurança que procuramos. Tudo o que o intelecto constrói, o intelecto pode destruir; 
  • O paradoxo e a contradição são inerentes àquelas filosofias sempre que procuramos comunicá-las ou pô-las em palavras, já que tratam um domínio ou dimensão da experiência que só se torna manifesto quando é transcendido o intelecto e nos livramos de todos os nomes e palavras; 
  •  Enquanto nós mesmos não tivermos um vislumbre claro, um saborear direto daquilo que o discurso da "Não-Dualidade" nos procura comunicar, e que se encontra por trás de conceitos como "iluminação" e "despertar", aquele sempre nos parecerá inconsistente, confuso e contraditório. Na geografia terrena, um mapa poderá conduzir-nos a um tesouro, mas na viagem em busca de Deus, só depois que o encontrámos é que se tornam claros para nós os mapas que o procuram indicar;
  • O discurso não tem que ser lógico, consistente, belo ou "verdadeiro". Tem é que ser eficaz em conduzir o olhar do buscador a ver aquilo para o qual pretende apontar. Não tem qualquer importância, significado ou valor intrínseco. É como um mapa que se torna inútil uma vez atingido o local que ele indicava. As palavras são apenas um dedo que aponta, como advertia Hui Neng, o sexto patriarca Zen, se te perdes a olhar para o dedo apontador, deixas de ver aquilo para o qual ele está a apontar.
  • Nunca a compreensão, o despertar ou a iluminação foram recebidos de algum livro, mestre ou guru. Essa é uma falsa impressão. Não são os livros e os mestres que produzem em nós o esclarecimento e a iluminação. Como é que os poderíamos compreender se não estivermos já iluminados e esclarecidos? As palavras dos mestres fazem apelo à nossa já inata sabedoria, à nossa inata capacidade de ver. Em diversas formas, os livros, quando são vitais e significativos, apenas podem ser uma corroboração do que nós próprios experimentamos e sentimos.
  • Os autênticos mestres Zen e Advaita, quando falam ou escrevem, mesmo em contexto pedagógico, não estão a transmitir ou comunicar aquela filosofia. Estão simplesmente a expressá-la! A sua fala e a sua escrita brotam do contacto com a realidade, não são um método ou uma receita para produzir esse contacto. O que fazem é uma descrição e não uma prescrição. A coisa está antes e não depois do símbolo e da palavra. É no descobrimento e dissipação deste equivoco que o "discípulo" ou "buscador" dá um passo decisivo na sua libertação.
  •  A condição humana é a de uma irrevogável e essencial solidão no viver e experimentar. Daí que ninguém nos possa substituir na compreensão nem nós nos podemos substituir a ninguém. Esta viagem é feita solitariamente. Mas nesta solidão existe uma riqueza e imensidão que tudo inclui.

Estas ideias irão ser expostas e expressas de diferentes modos e pontos de vista nos diversos textos deste blogue. Às vezes de forma muito condensada e sintética, e outras vezes de forma mais desdobrada e desenvolvida. Mas ao captarmos ou intuirmos a realidade que se encontra por trás das palavras e que é a fonte de onde elas brotam, sentiremos paradoxalmente aquilo que expressa um dos provérbios Zen:

 "Se estás imerso na dúvida e na confusão, todos os livros sagrados não te serão suficientes; quando o teu espírito repousa na calma da compreensão, até mesmo uma única palavra estará em excesso".
  A mesma ideia foi expressa por Shankara, o grande comentador dos Vedas da India milenar, que diz no "Viveka-Chudamani":

  "A erudição, o discurso bem-articulado, a riqueza de vocabulário e a capacidade de interpretar as escrituras, tais coisas aprazem ao erudito, mas não trazem a libertação. O estudo das escrituras será vão enquanto Brahman não tiver sido experimentado. E, depois que Brahman foi experimentado, é inútil ler as escrituras."

O autor deste blogue tem uma concepção dialética da comunicação. Isto significa que, nestas matérias, qualquer exposição verbal nunca será definitiva. O discurso tanto poderá parecer excessivo como insuficiente, correto ou equivocado, consoante a perspetiva em que se encontra o leitor. A possibilidade de divergência na interpretação está sempre presente. Daí que talvez seja necessário reformular as afirmações, negar e reafirmar, etc., à semelhança de um ladrilhador que vai cortando e ajustando uma peça até ela encaixar perfeitamente no espaço a que pertence. Mas esta perfeição não significa a expressão perfeita mas sim a compreensão perfeita. Aquela compreensão que surge quando, depois de transcendidas as palavras e os símbolos, ambos os espíritos olham na mesma direção. Por isso nalguns círculos se privilegia tanto a relação com um mestre ou guru. No contacto direto existe a possibilidade imediata de corrigir erradas interpretações para que o buscador possa ser desviado dos erros e atitudes obstaculizantes. Todos nós conhecemos já a experiência da perplexidade, da dúvida e da contradição que surgem durante a leitura de um livro. Isto advém das próprias limitações das palavras e da comunicação verbal. Nesses momentos gostaríamos de poder interpelar o autor de forma a clarificar a questão que nos perturba. Na relação com um mestre ou guru, a possibilidade desta correção está imediatamente presente. Mas o autêntico guru é aquele que se torna dispensável. O verdadeiro mestre liberta, não prende. A verdadeira ajuda, como declarou Nisargadatta Maharaj, só pode ser aquela que te coloca além da necessidade de ajuda.

É desnecessário dizer que quaisquer comentários ou sugestões serão bem vindos e merecedores de toda a atenção por parte do autor.

Junto as minhas mãos numa grata saudação.