A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Mostra-me o Teu Rosto Original

"Mostra-me o teu verdadeiro rosto, o rosto original que tinhas antes dos teus pais serem nascidos." -Koan Zen
Os outros têm de ti apenas uma representação. Aos outros apareces como objeto. Mas tu, a ti mesmo, vives-te como sujeito. Aquilo que és verdadeiramente é a  vivência subjetiva que tens como sujeito de percepções e experiências. Tu és Aquele que vê e não aquilo que é visto. A tua dimensão como sujeito jamais poderá surgir no campo de percepção do outro. O outro apenas pode vivenciar a sua própria subjetividade que a ti é invisível. Somos todos invisíveis uns para os outros! É só ao nível interior que a realidade ultima é "experienciada", que  contactamos aquilo que constitui a nossa verdadeira natureza, o ser autêntico de cada um de nós.  Em ultima instância apenas a consciência é real, pois a consciência é a condição de toda a experiência.  

A pessoa separada não existe. A sensação de sermos indivíduos separados é ilusória. Origina-se da identificação com o corpo e a história. A pessoa é a experiência; a consciência é a capacidade de experimentar. A consciência não é nenhum atributo individual. É de natureza impessoal e universal. Tu não és diferente de mim. Somos apenas diferentes ondas de um mesmo oceano de existência. Todas as distinções aparentes são emanações de um único campo universal de inteligência. Não existe outra realidade além da consciência única da qual todos participamos. Dessa linha invisível, subjacente a todos esses centros de percepção que emergem como os nossos corpos aparentes. Não existe nada a distinguir e a separar duas gotas de água que se elevam do oceano. E todo o oceano se manifesta em cada gota! 

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

"MuShin" - Considerações sobre o estado de "Não-Mente"



De uma forma mais ou menos consciente, os esforços do buscador quase sempre são direcionados ao aperfeiçoamento do conteúdo da mente, à busca da filosofia e das respostas mais rigorosas e perfeitas, à elaboração da suprema norma de conduta, algum principio orientador, alguma fórmula, algo que possa adquirir e usar. A plena maturidade vem com a compreensão de que qualquer apego ou aquisição se converte num estorvo. Qualquer bagagem ou acumulação limita a liberdade e turva a consciência como a sombra escura que limita o circulo brilhante da lua. Maturidade é compreender que a realização suprema não é algo que se possa alcançar ou adquirir, mas antes um estado original que importa reconhecer e em que podemos confiar. O importante não é o conteúdo perfeito mas antes o vazio perfeito. "A melhor coisa não é melhor do que nada!", diz um provérbio Zen.

Os mestres Taoistas e Zen-Budistas descrevem muitas vezes o estado natural como um estado de "Não-Mente" (MuShin em japonês). É um conceito poderoso pela sua radicalidade e poder descritivo. Refere-se a um estado de pura percepção, isenta de verbalização ou pensamento. É o simples estado natural de total disponibilidade, abertura e "não-saber". Nenhuma religião, nenhuma doutrina, nenhuma crença, nenhuma segurança, nada em que se apoiar. O encontro com os fenómenos e acontecimentos é totalmente vulnerável e inocente, porque liberto de qualquer mediação pelos mecanismos de tradução da experiência. Ausência da mente significa a ausência do ego, do pensamento volitivo. É o silenciar das reações dum "eu" separado, daquele comentador de fundo constituído de expectativas, julgamentos, desejos, esperanças e temores; o fim do cálculo em torno da aprovação ou rejeição social; o calar dessa voz que persiste em nos dizer que poderíamos ter agido melhor no passado ou como deveremos agir no futuro.

A iluminação ou o despertar não tem que ver com alguma classe de eventos ou estados particulares. A iluminação não diz respeito à situação em que te encontras, à forma como te sentes ou te comportas. Não existe uma categoria correta de estados iluminados em oposição àqueles que excluem a iluminação. O que desaparece é a divisão interior, a divisão entre um "eu" que vive e um "eu" que ensina a viver. Deixa de estar presente o comentarista ou censor que julga, avalia ou compara. Existe apenas um fluir natural e espontâneo, um sentir, viver e agir puro e simples. Não mais existe a entidade fictícia que se separa da experiência para a julgar, condenar ou justificar, aquela voz que sabe e idealiza e que sempre olha para aquilo que é através de uma ideia de como deveria ser. Cessa a aparente atividade de um "eu" imaginário, de um agente ilusório a pretender controlar, modificar ou manipular.

Importa compreender que não se trata da aquisição de qualquer tipo de perfeição, sabedoria ou virtude. É um estado totalmente isento de conteúdo, puro vazio. A denominação "Não-Mente" procura precisamente evitar  a confusão da dualidade e da luta entre os opostos. É o fim do conflito entre a aceitação e a recusa, da luta entre o que é e o que deveria ser. Cessa toda a possibilidade de rejeição e escolha, toda a  comparação entre o que penso que sou e algo em que me deveria converter. É o fim da "auto-consciência" com as suas atividades calculistas e protetoras em torno de um ego, de uma figura imaginária.

O estado de "Não-Mente" é um estado atemporal, dado que sem a mente o tempo não existe. Portanto não é nenhum resultado a que se possa chegar ou algo em que se possa pensar. Quando este salto acontece deixa de haver qualquer entidade para saber que alcançou algo. Não há ninguém para reclamar direitos de autor, ninguém para reivindicar coisa nenhuma. No estado de não-mente não existe o conhecimento do "estado de não-mente". Não se armazena qualquer experiência nem se elabora qualquer receita. Eu não posso conhecer ou produzir conscientemente um estado em que está ausente o mecanismo que permite nomear e conhecer. Por isso dizemos que não existe o individuo que dele possa beneficiar. O "eu" está de todo ausente. Há apenas o usufruir e experimentar, sem ninguém que usufrua ou experimente. Tendo cessado as atividades do ego, do pensamento como processo de vir-a-ser ou de tornar-se algo, desaparece o individuo separado capaz de atuar, conhecer ou produzir. O conhecimento está ausente, apenas o Ser está presente. Existe ação, mas não existe nenhum agente. O estado de "Não-Mente" é um estado de perfeita harmonia e unidade. Mas não é uma meta a lograr ou um resultado que tenhas alcançado. Existe precisamente no começo e não no fim. Só pode ser um despojamento, nunca uma aquisição.

O conhecimento conceptual implica sempre separação e dualidade. O conhecimento é como um dedo que aponta para fora, originando o experimentador separado da experiência, o sujeito separado do objeto, o agente separado da ação. Esta divisão artificial termina quando há perfeita quietude mental, silêncio. Neste estado de quietude não existe qualquer pensamento ou entidade para verbalizar ou conhecer o estado de consciência experimentado. O estado de "Não-Mente" não é algo que se possa obter ou conhecer, mas apenas ser e vivenciar. Daí que sempre se nos faça a advertência de que as palavras são como setas indicadoras. Elas podem apontar uma direção, mas terão de ser abandonadas quando entramos no caminho apontado. Uma metáfora budista diz-nos que, uma vez alcançada a outra margem de um rio, não carregamos às costas o barco que nos serviu na travessia. As palavras são como uma porta que é deixada para trás uma vez atravessada. Elas não nos podem acompanhar no salto que nos estabelece na pura realidade. A realidade é anterior a todas as palavras. O oceano da verdade é como um poço de ácido corrosivo em que somos completamente dissolvidos quando nele mergulhamos: nós desaparecemos e resta apenas a realidade. Apenas este fluir interminável sem causa nem propósito a que chamamos viver,... e uma alegria transbordante a impregnar o ser e o experimentar.

O estado de "Não-Mente" não pode ser uma ideia a aplicar ou objetivo a atingir. Se eu tiver uma concepção mental do estado de "Não-Mente" (o que seria uma contradição nos termos), então a minha experiência será avaliada de acordo com tal concepção. Esta atividade faz ainda parte das maquinações ilusórias do ego. Na ausência da mente cessa toda a avaliação e escolha. O "eu" simplesmente se dissolve numa fusão total com o ritmo do próprio Cosmos. É um estado de total imobilidade atemporal, de plena comunhão com aquilo que é, com  o que está. A atenção não mais se deixa capturar por algum momento fixo no tempo, mas permite-se fluir harmoniosamente com a perpétua e célere transformação da realidade emergente. Não significa que tu te tornaste inteligente. Apenas deixaste de ser um obstáculo no caminho da inteligência.

O estado de "Não-Mente" não pode ser reconhecido, uma vez que está ausente o mecanismo que permite comparar, avaliar ou reconhecer. É por isso que toda a atividade e esforço em torno do auto-aperfeiçoamento, toda a luta procurando aniquilar o ego ou obter a "iluminação", não passa de um inútil desperdício de energia. É tão fútil como o cão procurar agarrar a própria cauda ou uma criança tentar ultrapassar a própria sombra. O silêncio jamais poderá coexistir com a entidade que o procura alcançar, porque o silêncio aniquila completamente aquele que deseja  obter o silêncio. Só quando te retiras da frente de um espelho é que ele deixa de refletir a tua imagem, mas então tu já não te encontras aí para confirmar essa ausência.

O que temos de compreender é qual o vento, a água que ao banhar a mente a liberta de todo o passado e condicionamento. Por certo que não poderá ser nada vindo da própria mente, da memória ou da especulação intelectual. Não se pode pensar no "estado sem pensamento". Há uma realidade que só toma forma no imediato plano existencial. É uma dimensão que o pensamento não pode antecipar ou recordar. A mente jamais poderá invocar a sua própria ausência. Isto é que importa perceber. Aquilo que é manifesto no silêncio, só o silêncio pode experimentar. A atividade do pensamento é como um jogo circular de que ele próprio se alimenta. Mas há uma presença inefável que o pensamento jamais  poderá tocar. Esta presença não é um atributo mas sim o próprio Ser. É aquilo que somos e não algo que possuímos.

É por isso que o estado de "Não-Mente", a libertação não pode ser um processo gradual. O tempo só existe na mente e a mente não pode ser o instrumento que permite passar além da mente. A mente jamais poderá cooperar com a sua própria destruição. A saída deste circulo opressivo só pode ser uma resolução instantânea, um salto para além da mente. Este salto não requer nenhum "fazer", nenhum requisito é necessário cumprir. Consiste muito mais numa negação, num não agir, não fazer, não interferir (o "Wu Wei" do taoismo chinês), do que nalgum fazer, agir ou atuar positivamente. A intenção e a vontade representam o obstáculo, não o caminho.

É por ser uma coisa tão fácil e tão simples que ela parece difícil ou complicada. No entanto, uma vez mais, a dificuldade ou complicação só existe para a mente. Mas a mente não desempenha aqui qualquer papel. A mente, o ego, o pensamento, jamais poderá contactar ou experimentar a sua própria ausência. Isto é que tem de ser compreendido. Aquele estado torna-se presente quando a mente renuncia a todas as suas atividades, motivos e desejos. Sendo o nosso estado natural, ele não pode ser gerado através de esforço nem precisa de ser criado por qualquer atividade da nossa parte. Porque é preexistente a todas as nossas atividades. Não requer sequer ser conhecido ou verbalizado. Procurar conhecê-lo ou obtê-lo, é tão absurdo como um peixe andar em busca da água onde nada. É este o significado profundo do termo "Graça", algo que é  gratuito, livre de causa, que não é nenhum resultado ou objetivo. Acaso a vontade de um recém-nascido poderá ser a causa do seu ser e existir? Poderá ele ser o autor do seu próprio respirar e sentir? É o nosso esforço e a nossa vontade que faz o coração bater e o sangue circular? O que a natureza requer de nós é confiança e não resistência.

O risco que se corre ao fazer estas exposições verbais, é o de elas poderem involuntariamente intensificar a própria atividade que importa fazer cessar. As palavras fazem parecer complicado aquilo que é naturalmente simples.  Estas palavras não devem ser convertidas numa ideia a reter e aplicar. As palavras são meramente a expressão de uma realidade que está antes delas. Devem ser vistas como uma grosseira tentativa de descrição e não como uma prescrição. A claridade e lucidez não depende de palavras, símbolos ou expressão. Nada disto deve ser convertido num problema a resolver ou num esforço de compreensão. Compreender a realidade não é compreender as palavras que a procuram descrever. Nenhuma descrição é adequada, porque nenhuma descrição pode substituir o sabor da realidade. Se entrares num restaurante chinês, poderás não compreender a ementa, mas isso não te impede de usufruir plenamente da refeição. Aquilo que é real e verdadeiro não depende de conhecimento ou verbalização. A ordem da realidade não depende da ordem das palavras. Podemos falhar todas as questões dum exame de anatomia, mas entretanto o nosso metabolismo não deixará de funcionar perfeitamente. Nunca precisámos de aprender a crescer, a digerir ou a respirar. Ser e viver está além do conhecer e compreender. Uma ideia jamais poderá substituir o espírito capaz de a conceber. O conhecimento é um subproduto, um resultado. O importante é aquilo que lhe é anterior e lhe está na origem: o estado de aprender e experimentar. E este é um estado de vazio e receptividade que só se manifesta plenamente quando não há qualquer esforço ou apego, nem  luta por controlar, reter ou alcançar.

Não há solução para este dilema senão o reconhecimento da nossa impotência. A renuncia a toda a volição e esforço. Abandonar completamente todo o problema e voltar a atenção para a realidade imediata e presente, este fluir ininterrupto e espontâneo que a todo o momento se desenrola, completamente livre e alheio a quaisquer que sejam os nossos motivos, desejos ou lucubrações. "Esquecer tudo é o meio supremo", recomenda a sabedoria Zen. Abandona todos os teus pensamentos e pretensões, estabelece-te na paz e quietude do silêncio interior, e aquilo que então restar, isso é que é real.

domingo, 22 de setembro de 2013

Milagres e Realidade, Santos e Profetas, Verdade e Autoridade

Nesta questão da busca espiritual e procura da verdade, sempre me pareceu essencial a libertação da autoridade. Não há salvação fora da inteligência e esclarecimento individual. Não existe alternativa à investigação da própria experiência, à descoberta direta por nós mesmos. Por isso sou particularmente alérgico a um dos principais obstáculos à comunicação eficaz e esclarecimento da realidade. Refiro-me à necessidade de atribuir origens misteriosas e poderes sobrenaturais àqueles que consideramos sábios e esclarecidos. Deste vicio nefasto sempre sofreram as religiões organizadas. E é também o truque a que recorrem muitos pseudo-mestres ou gurus. Atraem discípulos e seguidores fazendo apelo a superstições e fantasias, avidez por milagres e promessas. Esta tentação sempre constituiu uma barreira que impediu que a autêntica mensagem dos sábios e profetas fosse eficazmente compreendida. Para que uma mensagem seja significativa e tenha valor para nós, não tem de provir de algum ser especial e transcendente que não partilhe a mesma natureza que nós partilhamos. Pelo contrário. Se essa mensagem não provem de alguém cuja natureza partilhamos, então não faz qualquer sentido procurar compreendê-la, uma vez que a sua experiência estará além daquilo que nós mesmos podemos experimentar e compreender.

Para encontrar sentido e significado no Sermão da Montanha, não preciso de acreditar que Jesus nasceu de uma mulher virgem, caminhava sobre as águas ou ressuscitava os mortos! Mesmo que comprovados, nenhum destes atributos seria o factor capaz de conferir veracidade às suas declarações. Para determinar se uma afirmação é verdadeira ou falsa, o que temos que verificar é se tem ou não correspondência na realidade dos factos e da experiência. E isso nada tem a ver com quaisquer características pessoais de quem a enuncia. Nada no mensageiro determina o valor da mensagem. Se alguém chegasse ao pé de nós e nos dissesse que a nossa casa se encontrava em chamas, o que faríamos? Iamos verificar as credenciais e o currículo de quem nos dava a informação?... Ou simplesmente desatávamos a correr para o local da nossa moradia?  Se não fosse a tentação que os seguidores (ou aproveitadores!?) dos sábios e profetas tiveram de deturpar os seus ensinamentos envolvendo-os em mitos e fantasias, a mensagem daqueles homens teria chegado até nós de forma mais autêntica, útil e eficaz. Não duvido que hoje, em muitos livros religiosos, é uma verdadeira proeza separar  a mensagem autêntica da fantasia que lhes foi acrescentada.

O que é para nós significativo e útil, é aquilo que contribui para o esclarecimento da nossa vida e da nossa experiência. As fantasias, mitos e milagres apenas confundem e impedem que a verdade chegue até nós. Somos seres humanos comuns e todos partilhamos da mesma humana natureza. A nossa experiência nada tem de transcendente ou sobrenatural. O mágico e o miraculoso não nos interessam. Só quem não está desperto para ver e sentir a beleza e o milagre que é a nossa existência concreta neste mundo, precisa da compensação e promessas de um outro mundo qualquer. A libertação e a alegria nesta vida não advém do facto de sermos imunes ao condicionamento, ao sofrimento e às paixões. Pelo contrário. Vem do facto de mais intensamente o termos experimentado e sofrido, para assim o podermos compreender e transcender. Foi o facto de termos sofrido mas termos descoberto a saída do sofrimento que leva a querer compartilhar com os outros essa descoberta.

A libertação encontra-se neste mundo e nesta vida. Na vida ordinária do quotidiano. Temos é de estar despertos e viver de forma mais consciente as nossas circunstâncias ordinárias. O paraíso que procuramos já está aqui. Nós é que sempre estivemos distraídos, ocupados em procurá-lo noutro sitio qualquer.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Regressar à Própria Experiência


 "Se é de conhecimento ou de sabedoria que andamos à procura, o melhor será irmos procurar diretamente à fonte. E esta não é o erudito ou o filósofo, não é o mestre, o santo ou o professor, mas a própria vida - a experiência direta de vida.".
                                                                                Henry Miller, Os Livros da Minha Vida

Sendo a natureza humana a mesma que todos partilhamos, quem desvenda os seus segredos tem que forçosamente confluir para a mesma realidade e fazer as mesmas descobertas essenciais. Por isso é um erro achar que todas essas diferentes tradições, métodos, caminhos, religiões,...  podem apresentar propostas fundamentalmente diferentes se realmente pretendem despertar e libertar o ser humano. Às vezes apenas confundem e atrapalham quem procura ajuda e esclarecimento. Se realmente é o mesmo ser humano que se procura mapear e libertar, que diferença pode haver nas verdades apontadas?! No entanto, frequentemente essas diferentes propostas apresentam-se como se cada uma delas tivesse a posse exclusiva das chaves do paraíso! Tantos pretensos mestres, tantos diferentes métodos e caminhos, tantas diferentes linhagens e tradições!!... Talvez que esta infindável peregrinação por livros e mestres, seja apenas um adiamento do único caminho que conduz ao esclarecimento e à verdade: decidir-se a estudar e investigar no laboratório sempre disponível da própria mente e do próprio coração!

A que se referem esses mestres, esses seres despertos e iluminados? Referem-se a algo implícito na minha vida? Ao meu ser autêntico e original? Algo intrínseco à minha própria natureza? Se assim é, então não faz sentido buscá-lo uma vez que já é manifesto na minha experiência. Basta-me ser fiel ao meu próprio ser, ser autenticamente eu mesmo. Se assim não for, se é algo alheio à minha vida, algo que tenho que obter, então também não faz sentido buscá-lo, pois é do campo do impermanente. E o que é impermanente não pode ser realizado, pois o que se obtém sempre se perde. É só quando regresso à minha própria experiência, ao ser autenticamente eu próprio, que posso encontrar seja lá o que for que os mestres me possam prometer. Afinal, como declarou Terêncio dois séculos antes de Cristo, "Sou homem! Nada de humano me é estranho!".

Este constante formular de novos problemas, esta necessidade de atualização com os novos livros e professores, este constante buscar e questionar, esta interminável atividade de arranjar pulgas para se coçar,... de onde provém? Não será do impulso tirânico da procura de segurança, garantias e permanência? Mas que entidade poderá beneficiar de toda esta atividade? Quem é este "eu" que deseja o nirvana ou a iluminação? Quem é o individuo que constantemente busca e se interroga e deambula entre diferentes mestres, caminhos e tradições? Terá existência real ou é apenas um produto da imaginação? Para quê insistir em querer fixar a forma das nuvens, escrever na água ou construir castelos de areia à beira mar?

Hoje muito daquilo que se escreve sobre "espiritualidade" e "não-dualidade" apenas procura esclarecer e solucionar problemas que foram criados precisamente pelos livros e tentativas de expor estas matérias em palavras e conceitos. Uma mente confusa e iludida projeta a sua confusão em tudo aquilo para onde olha. Não é raro que as palavras apenas consigam multiplicar os problemas que procuram resolver. Afinal não serão as palavras que alimentam o pensamento onde se aloja o ego?  Há um conto Zen que ilustra este dilema através da história de um pequeno peixe que era feliz, nadava e brincava no oceano, até ao dia em que ouviu um discurso sobre a água e a sua importância. A partir de então ficou obcecado pelo desejo de descobrir e obter tão precioso elemento!?!  Foi assim que perdeu a sua paz e alegria.

Sempre será um dilema e um paradoxo procurar através das palavras, comunicar e partilhar com os outros uma realidade que as palavras nunca conseguem capturar. Como podemos nós através das palavras transmitir aquilo que só pudemos constatar quando nos livrámos de todas as palavras?! Só quando nos dispomos a aprender por nós próprios, quando não fugimos á nossa própria solidão, é que podemos estabelecer a relação correta com os livros e a leitura. Ramana Maharshi dizia que os livros apenas vieram corroborar aquilo que ele havia experimentado diretamente antes de os ter lido. Krishnamurti afirmava que lhe era insuportável ler sobre "filosofia" e "espiritualidade", apenas valorizava a experiência direta e livre de quaisquer conhecimentos prévios.

Não se trata de criar uma atitude de evitamento e recusa perante os livros e os mestres. O que se trata é de compreender a relação que com eles estabelecemos, a atitude com que deles nos aproximamos, pois esta atitude é que em grande parte irá determinar o que deles iremos receber. É a nossa atitude e os nossos motivos que podem fazer que eles sejam para nós uma fonte de esclarecimento ou de perturbação.

É o espírito  que dá vida às palavras, não são as palavras que dão vida ao espírito. Tu não podes ser informado primeiro para experimentar depois. Pelo contrário, só depois que experimentaste é que poderás compreender as palavras que o informam. Como lembra Herman Hesse"Ninguém pode ver nem compreender nos outros o que ele próprio não tiver vivido" .

Quando sabes escutar, de toda a gente podes aprender. Por isso se diz que "quando o discípulo está pronto, o mestre aparece". De outra forma como o poderia reconhecer?... Não é o mestre que produz em ti o despertar. É a tua intenção sincera de abrir a mente e o coração. Em nós mesmos é que descobrimos o essencial, através da investigação direta do nosso próprio viver e experimentar. Só depois é que os livros começam a fazer sentido. Na geografia terrena um mapa pode conduzir-nos a um tesouro, mas na busca de Deus, primeiro teremos que o encontrar, só depois podemos compreender os mapas que o indicavam.

A verdade é uma presença e não uma posse. A verdade não me pode ser dada por outrem. O contacto com a realidade é sempre direto e solitário. Dos outros tenho apenas o corpo e as palavras. Servimo-nos das palavras para comunicar. Mas em ultima análise, as palavras serão sempre uma barreira e não um veiculo. As palavras não transportam a realidade. As palavras não são o ser da realidade que é. Nada nos garante que estamos realmente em comunicação e comunhão com o outro. O outro procura comunicar utilizando palavras. Mas as palavras estão sujeitas a interpretação. A interpretação não é a ponte que nos leva à experiência do outro. É uma barreira que nos separa dessa experiência. Nenhum discurso sobre a água pode saciar a tua sede. Tens que levar os teus próprios lábios à fonte. E a experiência do contacto com a água é algo intimo e solitário. Por isso a comunhão só existe quando assumimos de uma forma plena e completa a solidão. Paradoxalmente, só na solidão pode ser encontrada a experiência plena e autêntica do amor unificador. Só na solidão deixamos de ser muitos para passarmos a ser um só. Apenas quem está só é que pode amar!

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Tempo


"Você consegue sempre lidar com o Agora, mas nunca consegue fazê-lo com o futuro... Nem precisa de o fazer. A resposta, a força, a ação correta ou o recurso estarão presentes quando você precisar, não antes nem depois disso."  -Eckhart Tolle



Despendemos energia e pensamentos procurando reparar o passado. Despendemos energia e pensamentos procurando prevenir o futuro. Como podemos ter energia para corresponder adequadamente ao desafio presente?... O passado que procuramos consertar, jamais se teria tornado um problema se estivéssemos devidamente atentos quando ele era presente. Procurar agora ressuscitá-lo e corrigi-lo é um erro e um desperdício. O que temos de fazer é morrer para o passado morto.Toda a energia que gastamos a procurar reparar o passado ou a prevenir o futuro, constitui uma distração e um roubo ao momento presente.

Ao dedicarmos plena atenção à nossa circunstância actual, estaremos a dar a este momento tudo o que requer para que a resposta seja adequada. Cada momento é completo e eterno, contem em si mesmo todos os elementos necessários para ser correspondido. Não temos que nos socorrer de fórmulas vindas da experiência passada. Do mesmo modo não faz sentido procurar utilizar este momento para garantir respostas adequadas ao futuro. Na verdade não podemos roubar ao presente para dar ao futuro. A única coisa que fazemos é roubar ao presente algo que apenas ao presente poderia pertencer. Ainda que vivamos 100 anos, jamais conseguiremos viver no futuro um segundo que seja. Não podes aprender primeiro e viver depois. Enquanto buscas certeza e garantias, a vida se esvai. A vida não permite ensaios. O aprender e o viver acontecem simultaneamente... neste momento preciso em que te permites fluir com a própria vida!

A morte constitui a verdadeira medida de todas as coisas. É ela que te situa na perspetiva correta. Quando sabes que cada momento se gera a partir de si próprio. Cada momento tem a sua própria eternidade.  Nada nele foi determinado por outro momento qualquer. Nada dele será transportado para qualquer outro momento. Viver sem ontem nem amanhã!... Não é um esforço de imaginação que tens de fazer. É uma realidade inexorável. Mesmo que não a reconheças como tal. Cada momento é sempre o último e o primeiro. O Génesis e o Apocalipse estão sempre a acontecer. Perante a morte nada há a perder ou a ganhar. Perante a morte já nada estás a adiar. Nenhuma esperança alimentas. Nenhum temor te pode ameaçar. É só perante a morte que a entrega à vida é generosa e total.

A culpa desvanece-se quando morres para todo o passado. O medo desaparece quando desistes de querer controlar o futuro. Resta então a paz!...A paz e o jubilo que sempre permeiam o alinhamento perfeito com a atemporalidade deste momento eternamente presente!

Esta é a mensagem central que se encontra no coração de todas as grandes tradições espirituais e religiosas. Não nos deixemos impressionar e hipnotizar com frases românticas e discursos grandiosos e eloquentes. Tudo aponta a algo muito simples e nada misterioso: a realidade viva, presente e ordinária deste momento. Que não requer quaisquer palavras para se sentir e experimentar. Quaisquer palavras a podem expressar. Porque nenhuma palavra a expressa. Todas as palavras estão igualmente próximas. Porque todas as palavras estão igualmente distantes. Nenhuma palavra sequer a chega a tocar. Perante esta realidade todas as palavras são inúteis. Todas as palavras desaparecem. Apenas respirar! Apenas olhar e sentir! Apenas escutar!...

terça-feira, 10 de setembro de 2013

O Silêncio Jamais Será Vazio

                                                   
                                                    

Repetidamente ouvimos os mestres falar e distinguir um ego ilusório do nosso ser real, "self" ou consciência. Então desejamos uma garantia ou critério que nos permita saber quando é que uma atividade se origina num ou no outro. Mas só o ego formula tal problema ou interrogação. Apenas a mente, o intelecto pode desejar e obter tal satisfação. Pode alguma atividade auto-centrada, isto é, motivada por interesse próprio, ter origem diferente do ego? Como poderia tê-la? Só o ego deseja eliminar o ego. A luta para te libertares do ego e da personalidade ilusória, é algo semelhante a procurar limpar a tua imagem de um espelho. Por mais tempo e esforço que despendas a esfregar a sua superfície,  de cada vez que olhares irás ver nele a tua imagem refletida. Só quando te rendes à tua impotência,  quando abandonas o problema e te retiras é que a imagem desaparece. Mas quem estará aí então para confirmar a ausência da imagem?

Só no total desapego se encontra liberdade. O fogo da compreensão consome-nos completamente. E só nesta morte psicológica a ação está livre dos tentáculos do ego. Temos que desaparecer completamente. A renúncia tem que ser total, absoluta, incondicional. Só então o acto é lúcido e completo. O agente desaparece, há apenas ação. Termina a ilusão de uma existência separada. É este o significado de "Advaita" no experienciar da realidade: ser e existir liberto da ilusão da dualidade. É o fim do "eu" pessoal, a ausência de qualquer senso de individualidade. Desaparece a entidade separada que avalia, julga, conhece, controla, interpreta, rejeita ou aprova a experiência. Deixamos de existir noutra forma que não seja simplesmente como a luz que permite que a realidade seja. Somos então e apenas a consciência que dá vida e existência a tudo o que se experimenta. Mas não sob forma auto-consciente separada da experiência.  Não existe ninguém para conhecer ou verbalizar esse estado. Por isso Dogen, o fundador do Soto Zen japonês, escreveu no Genjôkôan: "Estudar a via do Buda, é estudar a si mesmo. Estudar a si mesmo é esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se a si mesmo é ser uno com todas as coisas".  

O que existe é a experiência, as sensações, as emoções, os sentimentos, os sons, as cores,.... mas não existe nenhum sujeito ao qual estas coisas aconteçam. Jamais encontramos qualquer individuo ou pessoa, mas apenas espírito, presença ou consciência impessoal. O "eu", a entidade separada é uma ficção criada no pensamento, uma palavra a que nenhuma substância corresponde, uma suposição sem qualquer fundamento, um significante sem significado. Se formos realmente honestos teremos de reconhecer que tudo o que podemos encontrar é apenas experiência e jamais encontramos nenhum experimentador. Nós não somos nada mais do que a condição para que todas as manifestações possam acontecer. Somos o invisível e imanifestado continente de todo o conteúdo, e deste jamais nos podemos abstrair. O som não está separado do silêncio que o acolhe. Toda a especulação que procure separar a consciência do seu conteúdo  não passa de um exercício ocioso e artificial condenado ao insucesso.

Nós somos consciência. E a consciência assemelha-se à luz. Quando acendemos uma luz numa sala escura, o que vemos não é a luz, o que vemos são todos os objectos que ela tornou manifestos. Este é o significado autêntico do amor. O amor com nada se parece mais do que com a luz. Porque a luz nada tem de si própria, não existe para si mesma, mas para dar existência a tudo o que existe. Todas as existências só o podem ser através dela. Sem ela nada pode ser. Mas ela nada é. Nós somos esse vazio feito consciência, somos luz, apenas luz! Sem os objetos a luz perde a sua substância, sem a luz os objectos perdem o seu significado. A consciência precisa dos objetos para se poder reconhecer; os objetos precisam da consciência para poder existir. Interior e exterior é apenas um mesmo movimento inseparável e unitário. E o silêncio é a harmonia que impregna toda a experiência. 

Por isso nos escritos Taoistas e Zen-Budistas, o espírito do homem livre é tantas vezes comparado a um espelho. Ele nada procura e nada repele. Tudo recebe sem nada reter. Cada nova imagem que surge na superfície do espelho apaga a que anteriormente ele refletia. Da mesma forma é a natureza vazia da consciência que lhe permite refletir de instante em instante o perpétuo fluir da realidade sempre cambiante. É como um  rio a correr que nunca permanece o mesmo e no entanto está sempre cheio. Perdemos na realidade sempre que procuramos reter! Como posso eu morrer se nunca for permanente? Como pode desaparecer o que não chegou a existir? Tal como as águas de um rio, sou permanente renovação, que nunca volta a percorrer o caminho percorrido. O silêncio jamais será vazio!

domingo, 14 de julho de 2013

O Mistério da Identidade




Perguntas-me quem sou! Como poderei dar-te uma resposta que seja honesta e verdadeira? Uma resposta que não te induza em ilusão? Que corresponda adequadamente àquilo que sou? Quando me fazes uma pergunta, esperas uma resposta. E a minha resposta será uma asserção verbal. Esperas uma definição daquilo que sou. Mas o que é uma definição? Toda a definição fragmenta e separa. Procura limitar e circunscrever. Quando defino um objecto, uma coisa, seja o que for, faço-o para o distinguir de outras coisas e objectos. Quando defino, digo não apenas o que a coisa é, mas também o que ela não é. Retiro-a de qualquer confusão com outras coisas quaisquer. Toda a forma de eu me definir, será uma forma de me limitar. E sempre que eu me limitar, estarei a cometer um erro.  Ao dizer que sou algo, estou a dizer também que não posso ser outra coisa qualquer. A definição exclui, deixa ficar de fora muito mais do que aquilo que abarca dentro. Por isso a definição é uma injustiça e uma fraude que cometes contigo mesmo. Porque é permanente a capacidade de te reinventares a ti próprio. Jamais poderás reter dentro de um aposento o sol que entra pela fresta da porta. 
  
A pergunta: "o que sou?", não tem uma resposta verbal. Apenas o silêncio pode captar a tua essência. Apenas do silêncio te pode vir a resposta. E essa resposta é sentida com todo o teu ser e não apenas com o intelecto. O intelecto apenas se alimenta de palavras e de sombras. Aquilo que tu és inclui, ultrapassa e transcende qualquer resposta que o intelecto possa elaborar.  Procurar que seja o intelecto a produzir a resposta é como querer pegar em ti mesmo ao colo ou querer introduzir a casa através da janela. Mesmo que achasses a definição perfeita e as palavras corretas, isso não passaria ainda de uma seta que aponta para algo que ela não contem e nela não podes encontrar. Não podes sentir a frescura da água mergulhando simplesmente no mapa de um rio. Não podes sentir o calor do fogo se a lareira de que te aproximas não passa de uma pintura numa tela. Poderás fazer uma bela ilustração do sol, mas se a pendurares na parede ela não iluminará a sala. Aquilo que tu és deve permanecer um mistério não classificável. Um "Nada" que é um potencial infinito de possibilidades e metamorfoses sempre imprevisível.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Caos e ordem



Enquanto a minha vida e a minha ação foram conduzidas pela exigência de ordem e busca da perfeição, deixei de falar o idioma do universo e a minha existência tornou-se num poema eternamente adiado. Foi quando fiz do caos o meu lema que passei a falar a linguagem do Cosmos. Entre nós estabeleceu-se um diálogo feito de milagres e de mistérios! Apenas os meus movimentos em busca de uma chave me impediam o acesso àquela porta que sempre se encontra aberta.

A ordem é apenas uma das infinitas possibilidades do caos. Por isso o caos é sempre maior e mais livre do que a ordem. Caos e ordem são apenas relativos ao espírito que os contempla. Podes idealizar a mais maravilhosa utopia, conceber a mais perfeita ordem social ou um paraíso de ordem e harmonia; mas se for habitado por seres perturbados e ansiosos, eles inevitavelmente acabarão por o subverter e reduzir à sua própria condição. A ordem é estabelecida pela alma de acordo a uma configuração singular que lhe é própria, partindo da disposição caótica dos seus elementos. E isto é feito de forma anárquica e espontânea como são todas as ações da alma!

Com a minha exigência de ordem por fora, apenas conheci o caos e a inquietude por dentro. Só pude sentir a paz e serenidade quando aceitei e abracei o caos. Por mais violento que seja o rodopio do furacão, no próprio centro está sempre imóvel. Por mais agitadas que sejam as ondas, o fundo do oceano é sempre sereno.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Ação e Ideia




"Em verdade vos digo que qualquer objeto que tenhais no pensamento, por mais sagrado que seja, será uma barreira entre vós e a intima verdade"  -M. Eckhart

Uma das atividades mais tirânicas da manutenção do ego consiste em converter a experiência em ideias que proporcionem segurança na ação. Qualquer experiência, por mais nobre e autêntica que tenha sido, é atraiçoada quando a procuras cristalizar numa ideia. É egoísmo procurar agir em conformidade com o amor e altruísmo. Se procuras ser consistente com uma ideia de liberdade, então não és livre, és escravo. Não podes ser livre se a tua ação se processa em obediência a uma ideia. Na liberdade não há lugar para a obediência ou conformidade, não há ideia a mediar a ação. A liberdade é ausência de ideia. A ação livre é sempre espontânea. A ideia gera dualidade ou separação entre aquilo que és e o que procuras aparentar, entre o que é e o que deveria ser. A ideia é qualquer coisa de alheio àquilo que de forma mais autêntica tu és. Apenas a arrogância cultiva a humildade. Só o egoísta procura ser generoso. O homem integro é uno  com a verdade. Ninguém precisa praticar ser o que já é. Um peixe não trata de atuar como um peixe para ser um peixe. Daí que alguém tenha afirmado: "As pessoas que estão demasiado ocupadas em fazer o bem não têm tempo para SER boas". Se há uma imagem em conformidade com a qual procuras atuar, então existe uma dissociação e negação daquilo que és. A ação não pode ser total e genuína enquanto houver um agente separado da ação.

O ego pode apropriar-se de qualquer exposição verbal ou simbólica, até mesmo da mais rigorosa e bem concebida exposição da não-dualidade. A sua infinita capacidade de metamorfose pode tomar a forma até do suposto ensinamento que o pretende eliminar. Porque essencialmente o ego alimenta-se de conceptualização e pensamento. Daí a necessidade de abandonar o barco que nos conduziu à outra margem. Por mais sólido e útil que tenha sido durante a travessia, uma vez alcançada a outra margem não faz sentido carregar o barco às costas. Quando caminhamos em terra firme, o barco torna-se um estorvo e uma carga inútil.  Que utilidade pode ter um mapa uma vez que já vimos claramente o tesouro? Continuar indefinidamente a interpretar, aperfeiçoar, completar ou idolatrar o mapa, só pode resultar num esforço inútil e num inútil dispêndio de energia. Daí que o Buda tenha declarado: "Nada obtive do despertar pleno e completo, e por isso ele é o despertar pleno e completo".

Sempre que uma compreensão se cristaliza num conceito mental ou numa fórmula com a qual procuro moldar a experiência, de acordo com a qual procuro agir, conformar a minha ação, então o ego modificou-se para poder subsistir. Se uma compreensão, experiência ou "insight", por mais elevado que seja, resulta numa aquisição (norma, crença, doutrina, conhecimento, etc.), então o ego ressurge sob uma nova forma. Abandonar uma crença para abraçar outra, ainda que oposta, significa permanecer amarrado na mesma ilusão. A libertação só é real quando aquilo que se perde não é substituído,  por mais elevada, sublime ou lucrativa que pareça a substituição e por mais sagrado que seja o objeto substituto. "Mesmo a melhor coisa não é melhor do que nada", diz a sabedoria Zen. A renúncia e desapego tem que ser absoluta e incondicional. A ação criadora assemelha-se ao som de um tambor, origina-se desde o vazio interior.

Por mais forte que seja a atração pela certeza e segurança, este impulso ou desejo é a principal origem e sustento do ego. O ego procura sempre escudar-se atrás de ideias que o protejam do desconhecido e  imprevisível. Daí o esforço constante para conceptualizar e nomear a experiência. Sempre que uma crença é substituída por outra, não importa se falsa ou verdadeira, então o ego encontrou uma nova forma de apoio e sustento. Qualquer crença se converte num exercício auto-opressivo que envolve numa camisa-de-forças a experiência. O importante é o abandono de toda a crença, todo o desejo de segurança. Trata-se de abraçar a insegurança e a incerteza, ou antes, de não lhes procurar fugir. Permanecer no silêncio e no vazio. Só então é possível contactar uma dimensão que nada tem a ver com as formulações do intelecto e maquinações ilusórias do ego. Só então a ação acontece desde uma percepção lúcida e direta da realidade.

O impulso à segurança é muito forte e subtil e por isso necessita vigilância constante. Porque o ego de tudo pode colher alimento, inclusive dos ensinamentos do mais santo, do mais sábio e bem intencionado guru ou profeta. Qualquer descrição, o ego irá procurar converter numa prescrição, quer dizer, num instrumento de manipulação da experiência. Porque o ego constitui-se essencialmente de resistência e controle. Na presença do ego, qualquer céu se pode converter num inferno. Na sua ausência tudo é invadido pela paz e bem-aventurança.

Observa a forma que tem a tua resposta a este momento presente. Como lhe correspondes? Tomas como pressuposto que existe a forma correta, adequada, perfeita de responder ao desafio? Possuis armazenada ao nível conceptual uma fórmula ou receita que agora procuras aplicar? A tua ação é comandada, dirigida por uma ideia elaborada, uma crença, um conceito que armazenaste devido ao teu desejo de perfeição e segurança? A tua ação tem a proteção e mediação de uma ideia, não importando o rigor ou a santidade  da sua proveniência? Ou pelo contrário, te permites apresentar perante o desafio de uma forma completamente desarmada e vulnerável, quer dizer, de uma forma nua, direta, totalmente aberta e desprotegida?

Se a tua busca e aprendizagem resultou numa fórmula e se cristalizou num conceito na base do qual procuras atuar, então permaneces cego e invulnerável à realidade. Porque a realidade deste momento é sempre o desconhecido. "O desconhecido não é o futuro, porém o presente!" observou Krishnamurti. E o desconhecido não pode ser captado por qualquer conceito. Só o podes contactar se a tua mente, os teus conceitos não se interpuserem, se não o procuras enformar dentro das tuas crenças e conhecimentos. O contacto com a realidade estabelece-se através da atenção, não do pensamento. 

O estado natural dispensa conhecimento e verbalização. É como a felicidade, só te apercebes da sua existência depois que a perdeste. Quando eras uma criança ainda pequena nada sabias da felicidade. Eras feliz sem o saber e sem o nomear. É por isso que, em última instância, os ensinamentos dos homens sábios são como a porta deixada para trás uma vez atravessada. Para não serem convertidos num novo apego e uma nova carga. O Buda ensinava que não devemos carregar às costas a balsa que nos serviu para atravessar o rio. Sempre que existe o desejo de fixar um insight, uma experiência ou uma compreensão, este acaba por se converter numa nova forma de segurança e numa nova referência com a qual abalizar a ação. É apenas uma cela diferente dentro da mesma prisão.

A mente procura uma fórmula infalível que satisfaça o seu anseio de segurança e permanência, um conceito definitivo e imperturbável no qual se possa estabelecer de forma conclusiva. Mas esta esperança é completamente infundada e ilusória. Nada do que o pensamento concebe escapa à fluidez e impermanência do próprio pensamento. Tudo o que a mente constrói e formula, só subsiste enquanto suportado e alimentado pela própria mente. Mas a própria mente tem existência intermitente, surge e desaparece.

"Ama, et fac quod vis!" (Ama, e faz o que quiseres!), declarou Santo Agostinho. A única ação verdadeiramente inteligente só pode ser resultado do amor, que é a ação num total espaço de disponibilidade, abertura e não-saber. Apenas a consciência, quer dizer, o amor, pode receber a realidade. E o amor significa na verdade a tua ausência.  Só quando tu não estás é que a verdade pode brilhar. 

domingo, 27 de janeiro de 2013

Pode-se Possuir a Verdade? São as palavras o vaso que a pode conter?


No diálogo entre o sábio e o buscador, só as perguntas deste provocam as respostas daquele. Sem o questionamento do buscador, o sábio permaneceria em silêncio. Não sente necessidade de qualquer tradução verbal. Nós procuramos aferrar-nos às palavras na triste ilusão de garantir acesso, permanência e continuidade. Com elas substituímos a realidade. Mas nem a mais completa das  ementas  poderá substituir a mais frugal das  refeições.

As palavras não constroem a realidade do sábio. É antes da sua realidade que brotam as suas palavras. As palavras do sábio poderão expressar o seu sentir e experimentar. Mas este sentir e perceber não depende de palavras. A realidade é anterior e independente de conhecimento e verbalização. O sábio permanece neste oceano de realidade e deixa que se desvaneçam as palavras. Permite que elas surjam e  desapareçam. O seu mundo e a sua experiência brotam da paz, do silêncio e do vazio. Sabe que nada disto é pessoal. Não é algo que ele possa produzir. Por isso é livre de esforço para reter ou alcançar. As palavras do sábio são imediatamente esquecidas logo que pronunciadas. Só nesta liberdade é que a verdade e a compreensão podem surgir. Só no desapego, no total desprendimento da memória e do passado, a ação pode ser descondicionada e livre.  

Que significa a percepção desta verdade? Vais utilizá-la a fim de te protegeres de novos enganos e ilusões? Vais procurar registá-la e guardá-la para te servir de norma na ação? Estás a iludir-te uma vez mais. O que a mente pode conceber e registar é meramente uma expressão e um reflexo do elemento criador original.  Existe um funcionar espontâneo e natural do qual a mente só uma ínfima parte pode traduzir. O experienciar a realidade na totalidade da sua manifestação, acontece de momento a momento numa dimensão atemporal. Isto! Aqui! Agora!... é sempre perfeito, completo e imprevisível! O presente imediato, esta dimensão atemporal, jamais poderá ser captada por um fragmento tão parcial e limitado como o intelecto. O momento presente, enquanto vivido, é infinitamente aberto e uma totalidade imprevisível. Mas quando pensado, já se tornou passado, algo de rígido, limitado e definitivamente cristalizado. O conhecido é meramente um resultado e um subproduto do desconhecido. Jamais o poderá substituir. Só podes procurar e desejar aquilo que já conheces. Mas a experiência original é livre e independente de conhecimento, de busca e de tudo aquilo que a mente e o desejo pode conceber.

Queremos estar certos e seguros de possuir a verdade. Mas a verdade não pode ser possuída. Se a procuras cristalizar num conceito, numa crença, então a palavra, o símbolo passa a substituir a realidade. Como afirmava Krishnamurti, os conceitos podem ser repetidos, mas a verdade tem que ser sempre descoberta de novo, não pode ser repetida. O intelecto não pode substituir a presença consciente, o pensamento não pode substituir a atenção. A crença origina-se da vontade de posse e do desejo de segurança. Mas a verdade será sempre completamente livre e selvagem. Para poder despontar requer espaço e liberdade. Não a podemos reter num livro ou na memória. A verdade que liberta é como uma vela que ilumina. Ela própria se consome no processo em que dá luz. Ela própria se desvanece e desaparece. Dela própria nada resta!

Um dia compreenderás que a autêntica liberdade não depende de respostas às tuas perguntas. Isso não é liberdade, é dependência! A liberdade que depende de respostas é sempre pequena e limitada. Saberes viver com perguntas sem dependeres das respostas, isso sim, é o fim de todas as amarras! É abrir-se à experiência do infinito e ilimitado. É mergulhar no desconhecido aceitando a companhia  da insegurança e do medo. E nesse processo, assistir à radical transfiguração da emoção e do sentimento. Melhor do que termos um mapa para seguir, é sermos nós mesmos a luz que ilumina o caminho.