A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






quarta-feira, 16 de agosto de 2017

”NENHUM FLOCO DE NEVE CAI NO LUGAR ERRADO”


A impermanência e transitoriedade é a característica inevitável de todos os estados e experiências. Não existe o estado perpétuo de eterna iluminação e bem-aventurança. Essa é uma ideia errada. Mesmo os mestres que admiramos e reverenciamos não vivem num estado de permanente nirvana e ininterrupta felicidade. Não acredites naquela história em que um autor fala de um passeio na floresta, um maravilhoso contemplar do pôr-do-sol à beira-mar, um acordar após uma noite de angustia existencial ou outra experiência qualquer, em que de repente é atingido pela flecha iluminada do nirvana ou um raio de compreensão súbita que lhe desvenda os segredos do universo, passando então a viver num estado de êxtase iluminado e felicidade permanente. Isso não existe! É apenas um estratagema literário que empresta certo colorido romântico à narração mas sem rigorosa correspondência na realidade.

Essencialmente todos passamos pelas mesmas dúvidas e perplexidades. Julgamo-nos já definitivamente instalados no jardim do Éden e constantemente nos vemos expulsos do paraíso. O jogo da mente é muito subtil. Consideramos um estado ou experiência como o correto ou satisfatório e quando outro estado se nos depara julgamos que há alguma coisa errada. Não há nada de errado se nós assim o não considerarmos! O problema só é criado pelo pensamento que julga, avalia e compara.

Para a nossa natureza original, o nosso ser mais profundo e essencial, não há quaisquer problemas, nem desejos ou aversões. Tudo o que surge é aceite e permitido. Devemos viver as coisas tal como se apresentam. Ninguém tem o controle. Nós nada podemos fazer. O segredo está em não discutirmos, não lutarmos com a vida ou com nós mesmos. Para sermos plenos e completos devemos permitir-nos experimentar tudo. O sábio não é um ser humano perfeito, é um ser humano total!

O desejo por experiências, mesmo as mais nobres e espirituais, é como outro desejo qualquer. Enquanto houver alguém a avaliar e escolher o que é espiritual e não é, a rejeitar uma experiência e a aprovar outra, a perseguir determinados estados particulares que se procuram repetir e capturar, estaremos sob o domínio da ilusão. Quando compreendemos que tudo é impermanente, já nenhum estado tentaremos produzir e nenhuma perturbação evitar, nenhum prazer desejaremos reter, nenhuma experiência conservar!...

Aquilo que realmente somos, a nossa natureza essencial, não tem nada a ver com estados e experiências de índole particular. O nosso Ser está presente em todas as experiências. Quando vivemos desde o nosso estado natural, da pura consciência impessoal que somos, não há desejo, nem esforço, não há rejeição disto a favor daquilo, não há escolha, avaliação ou comparação. Nem sequer há necessidade de palavras a tentar descrever, explicar, definir. Há apenas atenção e silêncio. Apenas disponibilidade e vazio, paz, quietude! E nem mesmo existe alguém para saber disto. Não há ninguém para saber coisa nenhuma. E é maravilhoso e magnífico! Mas não tem nada a ver contigo ou comigo. Nós nada podemos fazer. Nada podemos produzir. É Graça total!

Com a aceitação vem a paz. A constante atividade mental de calcular, julgar, interpretar, resistir é que complica a vida. Tudo flui, nada permanece! A vida é como um rio a correr. Às vezes a água vai mais clara, outras vezes mais turva, às vezes leva alguma sujidade, mas se não a estancarmos, acaba sempre por retornar à pureza original. O importante é não julgarmos que devíamos fazer ou sentir alguma coisa diferente do que fazemos ou sentimos, ou que as coisas deviam ser de outra maneira. Tudo é como deve ser! Tudo está bem como está! Ao longe todos os acidentes se alisam. À distância todos os percalços ganham sentido. Por maior que seja a agitação das ondas, sob uma perspetiva mais ampla o mar é sempre sereno

Como diz o ditado Zen, ”nenhum floco de neve cai no lugar errado”. O fim da dualidade significa o calar daquele comentador cá dentro sempre a emitir juízos e avaliações, a condenar ou a aprovar, a dizer o que é correto e o que não é, o que está bem e o que está mal. Nós somos imensos. Somos maiores do que a mente. Maiores do que qualquer coisa que possamos pensar. Do que isto trata não é de sermos iluminados e perfeitos. Trata-se de sermos íntegros, completos. O importante é aquilo que é real e não o que desejamos ou perseguimos.

 A única coisa a que devemos aspirar é total e completa liberdade. E nunca seremos plenamente livres enquanto houver coisas que perseguimos e coisas que rejeitamos. Nenhuma moeda pode existir com uma única face. Queremos felicidade sem dor, mas não se pode ter um arco-íris sem um pouco de chuva. Por isso sê benevolente contigo próprio. Permite-te ser visitado por todos os anjos e demónios. Mas como recomendava um sábio mestre Zen, simplesmente não lhes sirvas chá. Eles vêm sem que tu os tenhas chamado e partirão do mesmo modo como vieram.

Uma história budista conta que certa vez um rei se dirigiu a um homem sábio para lhe pedir uma fórmula que sintetizasse toda a sua sabedoria. Então o sábio entregou-lhe um anel com um simples aforismo para o rei recordar em todos os seus encontros com a vida. Continha apenas três palavras: “Isto também passará!”. Esta história nada tem a ver com a atitude “new age”, nem é nenhuma apologia do pensamento positivo ou da coragem perante a adversidade. É um convite à descoberta de uma paz e serenidade que subjaz além de todos os estados e circunstâncias. Ao desapego e desidentificação perante todas as situações e experiências, tanto as de dor e sofrimento, como as de êxtase ou iluminação.

domingo, 13 de agosto de 2017

APENAS UM DEDO QUE APONTA


                             "As palavras são como um dedo que aponta.
                             Se fixas o teu olhar no dedo apontador
                             perdes a realidade para a qual ele está a apontar."
                                  -Hui Neng

 Quem tem alguma familiaridade com os textos e autores da "Não-Dualidade" talvez já se tenha deparado com alguma comunicação a atacar ou defender os vícios ou  virtudes do que se convencionou chamar de “Neo-Advaita” em oposição ao “Advaita Tradicional”. Esse é um exercício inútil e estéril. Cada pessoa irá acatar os livros ou tradições que mais ressoarem com a sua própria compreensão. Irá valorizar os mestres e autores que mais a ajudaram a clarificar a sua própria experiência. Cada um faz os seus próprios sublinhados nos livros que lê. O nosso próprio e direto encontro com a realidade é que será sempre o último juiz da verdade. Não precisamos de um guia para caminhar pois nós mesmos já somos a luz que ilumina o caminho.

A preocupação por estar certo e seguro, de estudar a tradição e os mestres corretos, é uma necessidade ilusória. A mente tem horror ao mistério e à incerteza. Mas para quê a necessidade de certezas e garantias, de possuir a filosofia verdadeira, de seguir a tradição correta? Todos os homens verdadeiramente sábios afirmaram a impossibilidade de as palavras poderem expressar adequadamente a verdade. A realidade será sempre infinitamente mais vasta do que quaisquer palavras que nós usemos para a representar ou comunicar. 

Seja qual for a declaração que se faça, podemos sempre encontrar um sentido em que é verdadeira e outro em que é falsa. Tudo depende da nossa perspetiva e do significado que atribuímos às palavras. Qualquer coisa que o pensamento construa, o pensamento pode destruir. Ao nível verbal e intelectual
é sempre possível detetar inconsistências e contradições nos escritos dos grandes mestres do Zen e Advaita, quer sejam antigos ou modernos. Mas para quem vislumbrou, além das palavras, a realidade para que elas apontam, aquelas afirmações aparentemente contraditórias revestem-se de tremenda coerência e harmonia.

O Advaita, tal como o Zen-Budismo ou o Dzogchen, não ambiciona criar nenhum complexo e irrefutável sistema filosófico. Não tem finalidades especulativas mas sim pragmáticas. Nada acrescenta ao nosso acervo intelectual. Modifica a nossa experiência no encontro com a vida. É muito mais um processo de desaprendizagem e esvaziamento do que de aquisição. Através da eliminação de juízos erróneos e falsos conceitos, leva-nos a uma intuição direta da natureza da realidade e da nossa própria essência. Se algum tipo de conhecimento produz, é o mesmo que recomendava Sócrates e se encontra inscrito no átrio do templo de Apolo em Delfos : “Conhece-te a ti mesmo!”

A verdade não pode ser reivindicada por nenhuma espécie de clube privado, intitule-se ele de advaita, neo-advaita ou outro rótulo qualquer. Esse tipo de discussão poderá atrair o académico e o intelectual, mas é completamente desinteressante para o buscador sincero da verdade. Este sabe que a verdade não é posse de nenhum guru, doutrina ou tradição em particular. Não tem um pouso fixo ou morada certa onde devamos ir bater para a encontrar. A verdade vem-nos às vezes sob a forma de um romance, outras vezes de um poema; tanto pode ser encontrada nas páginas de um livro sagrado como nos graffiti das paredes subterrâneas do metro. Ás vezes escutamo-la nas palavras de um profeta, outras vezes nas perguntas de uma criança. Se estamos realmente despertos podemos reconhecê-la até nos sussurros da noite e no murmúrio do vento.

Ninguém possui a verdade, ninguém está na mentira. Há pontos de vista e não verdades absolutas. Fica com aquilo que mais ressoar com a tua própria experiência. Confia na tua própria percepção da realidade. Permanece aberto ao mistério e ao desconhecido. E quando a serenidade do teu espírito for abalada pelas sombras da dúvida e da incerteza, talvez possas reencontrar alguma paz ao recordar estes versos de Fernando Pessoa:
"A terra é feita de Céu
A mentira não tem ninho
Nunca ninguém se perdeu
Tudo é Verdade e Caminho."

quinta-feira, 6 de julho de 2017

O EGO E A BUSCA





Observa a tua experiência e vê o que sucede quando te dás a oportunidade de experimentar a desorientação do buscador espiritual que deixa de procurar uma experiência diferente da que ocorre neste preciso instante. Talvez sintas que o buscador se dissolve e surge a paz, aquela paz que era perseguida pelo buscador.” 
                                                                                                         - Adyashanti


 
Alguém uma vez afirmou que o peixe é a ultima criatura a descobrir a água. Há uma fábula Zen que conta a história de um pequeno peixe que, depois de ter ouvido um discurso sobre a água, se envolve numa busca interminável à procura desse elemento tão precioso. Muitas vezes é o próprio nomear e conceptualizar que gera os problemas que procura resolver. Já me tenho perguntado se haverá alguma forma de falar destas coisas sem que involuntariamente estejamos a alimentar o próprio ego que se pretende dissolver. É muito difícil ler ou ouvir discursos sobre espiritualidade, não-dualidade, paz, vazio, unidade, etc. sem que o ego se aproprie dos conceitos e os converta em novos objetos de busca e de desejo. Daí o perguntar: como posso alcançar, realizar, obter, etc.?

É urgente e fundamental perceber que a demanda por estas coisas jamais poderá ser satisfeita, porque o ego não vai estar lá para as poder experimentar e possuir. O ego é uma entidade fictícia que só surge ou se torna aparente quando há resistência ao que é, a favor de algum ideal. A mente, o individuo, o ego, ou como lhe queiramos chamar, é gerado pela própria resistência e compulsão. Só pode existir enquanto tiver um objetivo que perseguir, um desejo a realizar, alguma coisa que manter ou rejeitar. É por isso que o desejo de nos libertarmos do ego é apenas mais um dos truques que o ego utiliza para sobreviver. A luta e o esforço na dimensão psicológica sempre mantém e fortalece aquilo contra o qual lutamos.

Uma das nossas maiores dificuldades é que não percebemos a natureza ilusória do ego em toda a sua extensão. Podemos reconhecer a futilidade da atividade egocêntrica em busca de prazer, intoxicação, dinheiro, poder, prestigio, reconhecimento, etc., no plano mundano. Mas não percebemos que é a mesma atividade que funciona quando nos viramos para o chamado mundo espiritual e nos envolvemos nas mais diversas atividades a fim de conseguir o passaporte que nos leve ao nirvana ou à iluminação. Não percebemos que é a mesma entidade ilusória que se senta aos pés do guru, devora toda a literatura sagrada e formula todo o tipo de dúvidas e questões a fim de garantir que não comete qualquer erro em direção à meta espiritual. Julgamos este “ego espiritual” dotado de algum tipo de permanência ou superioridade, mas a sua natureza é tão ilusória como aquele ego mundano de que nos quisemos libertar.

E qualquer coisa que queiramos fazer a fim de corrigir esta situação, será sempre mais do mesmo. Toda a ação envolvendo o esforço e a vontade é sempre produto da mesma ilusão. Toda a substituição, todo o abandono do incorreto para abraçar o correto, toda a renúncia com o desejo de ganho, não passam de movimentos no interior da prisão. Quando queremos alcançar, possuir, controlar, reproduzir a experiência da ausência do ego, a mente é o único instrumento de que dispomos. Mas é um instrumento completamente inadequado. Porque a mente é o instrumento da intenção e da vontade. E a intenção e a vontade é a positiva manifestação do ego. O ego é o próprio centro do esforço e da volição. Só um “eu” pode querer acabar com o “eu”.

Então, que fazer?... Nada!... Simplesmente parar, relaxar!... Apenas observar, respirar, escutar, sentir!... E isto não é nenhum "fazer". É apenas o simples funcionamento natural. É isto que sugerem os grandes mestres como sendo a arte da meditação. Uma atitude de plena aceitação em que cessa toda a fuga, toda a luta e resistência e nos permitimos viver plenamente o momento tal como ele se apresenta.

A mente não pode fugir de si mesma! O próprio pensamento é sustentado pelo esforço que o procura eliminar. O jogo da mente é muito subtil, o ego tem uma enorme capacidade de metamorfose. Quando assumimos que temos uma mente doente e confusa e desejamos promover uma transformação, quem é a entidade que deseja promover tal mudança? É essa mesma mente doente e confusa! É a mesma mente e não uma mente diferente. Só há uma mente e está toda ela doente. Não há uma parte sã que vai curar outra parte aleijada. Eis porque o auto-aperfeiçoamento não passa de uma falácia ilusória. É como um cão correndo atrás da própria cauda. A paz e serenidade vem quando reconhecemos a nossa impotência e abandonamos o problema. Se formos verdadeiramente honestos, tudo o que podemos fazer é desistir de todos os nossos intentos e esforços, porque qualquer coisa que esse agente faça permanece dentro da esfera da ilusão.

O verdadeiro despertar acontece quando há um percebimento claro de que tu nada podes fazer para o produzires. A iluminação não é um resultado que possas conseguir em virtude de aplicares o método ou os ingredientes corretos. A transformação não pode ser deliberadamente calculada e produzida. Sucede de forma espontânea, na ausência de qualquer pretenso agente transformador, quando cessa toda a luta e resistência.

A autêntica liberdade significa a completa extinção de toda a necessidade de manipulação e controle. Quando nos confiamos ao colo divino já nada precisamos saber, nada precisamos fazer. A vida é puro gozo, puro fruir. Não é nenhum trabalho, nenhuma corrida de obstáculos, nenhum puzzle que temos de montar. É de uma simplicidade absoluta e magistral. Não é de admirar que a tal "iluminação" ou "despertar" seja tantas vezes associada a uma gargalhada de alivio e prazer!