A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






segunda-feira, 2 de maio de 2011

Mestre e discípulo

A maioria dos mestres e gurus fazem atraentes discursos sobre a beleza da comunhão com Deus, o ser uno com o universo e o êxtase da vida livre da tirania do ego. Fazem-no à semelhança de alguém que, das águas frescas de um rio numa tarde de calor, fala para os que se encontram na margem e descreve a maravilhosa sensação do contacto com a água. O verdadeiro sábio é aquele que sem pronunciar uma palavra te agarra por um braço, te puxa para dentro da água e deixa que tu mesmo descubras essas sensações. Quem está numa prisão não quer brilhantes discursos sobre a vida ao sol e ao ar livre. O que quer é um túnel ou uma ponte que o tire dali para fora. Imagina que estás à beira da morte por inanição. Um homem acerca-se de ti fazendo maravilhosas descrições da comida,  explica-te todo o processo biológico da assimilação dos alimentos, a circulação do sangue e o funcionamento do aparelho digestivo. Depois fica exasperado por verificar que morreste antes de ter concluído. Um outro, simplesmente te apoia a cabeça nos seus braços e te leva à boca água e alimento. Qual deles foi para ti a ajuda mais essencial?

Os mestres espirituais, os gurus, os "despertos" e "iluminados" podem ser infinitamente bem-intencionados ao falar e ao escrever os seus livros. Mas a verdade é que involuntariamente podem alimentar nos discípulos precisamente aquilo que cumpre eliminar: a actividade do ego, da busca e do desejo. O guru ou o mestre espiritual, pode ter-se desembaraçado do ego e ter acedido ao ser autêntico, puro, essencial e não condicionado. Mas quando põe em palavras a sua experiência, desperta em quem o ouve o desejo de aceder à mesma realidade. Podem querer eliminar a atividade egocêntrica mas o que fazem é apenas dar-lhe uma nova forma, uma nova direção. O ego não deixa de ser o que é apenas porque muda o seu objecto de desejo. Um mestre pode, porque se libertou do desejo e da atividade do ego, experimentar um estado de ser que pinta com as cores mais maravilhosas. Mas a verdade é que ao dar nome à sua experiência, ao pô-la em palavras perante um auditório, o que faz involuntariamente é espetar neste o aguilhão da inveja, contribuindo assim para fortalecer precisamente o que pretende matar.

Aquilo que é fruto da naturalidade e da espontaneidade não pode ser transformado em objecto de desejo. Não pode ser colocado no fim da estrada como uma meta ou objectivo a atingir. O mestre ou guru não tem que exibir perante o discípulo a beleza e o êxtase de um estado futuro que supostamente poderá alcançar. O que ganha o discípulo com essas descrições? A ajuda eficaz seria aquela que volta a atenção para o estado real do discípulo. Aquela que lhe permite tomar consciência das atividades ilusórias da mente e do desejo. Aquela que lhe mostra como ele é o seu próprio carcereiro. Que lhe permite tomar consciência de que o seu sofrimento, a sua ansiedade e o inferno que experimenta não é mais do que um produto da sua própria fábrica mental. Apenas disto é que se deve consciencializar e apenas sobre isto é que deve despertar. O que vier depois dessa libertação, virá, e ele cá estará para o receber. Não tem que ser previamente informado e assim transformá-lo num objectivo, numa meta a alcançar e num desejo a satisfazer. Se o que o mestre ou guru faz é despertar-lhe esta atividade do desejo, seria preferível não os ler ou escutar, pois longe de lhe serem benéficos são antes prejudiciais.

O mestre mais eficaz e compassivo estende ao discípulo uma mão que representa uma ajuda inteligível desde a sua margem do rio (do discípulo). Se apenas se compraz numa espécie de masturbação verbal a partir da margem em que se encontra (o mestre), então de nenhuma utilidade poderá ser. O discípulo não tem que ser exposto a belas descrições do paraíso e da "vida espiritual" que o aguarda após a libertação do ego. Quando já não funcionar através do ego, ele próprio poderá fazer essas descrições. E talvez até encontre formas mais belas e sublimes de o fazer e expressar. Enquanto sob a tirania do ego, essas descrições de nada lhe servem. Liberto dessa tirania, elas são-lhe totalmente supérfluas.

A principal barreira que o discípulo experimenta na sua relação com o mestre tem a ver com a  dificuldade em se colocar na mesma perspetiva e ponto de vista. Mas frequentemente o mestre comete o erro de não se saber colocar no lugar do discípulo. O mestre encontra-se numa dimensão diferente e muitas vezes não sabe, ou não procura, descer ao nível do discípulo e estender-lhe uma ajuda compreensível desde o ponto de vista deste último. Fala utilizando uma linguagem que só é compreensível para quem já não precisa dela.

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