A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






domingo, 8 de maio de 2011

Ser e Vir-a-Ser


O pensador faz parte do pensamento e não subsiste quando este termina. O pensador só está presente enquanto decorre o processo de pensamento. É uma entidade ilusória à qual o pensamento atribui permanência. Na realidade não existe pensador mas apenas pensamento. Na ausência de pensamento permanece apenas o Ser ou Consciência impessoal que não beneficia de qualquer aquisição ou renúncia elaborada pelo pensamento. A entidade que utiliza o pensamento para se auto-aperfeiçoar, para se engrandecer ou diminuir, para atingir ou alcançar, é uma entidade ilusória, uma projeção ou invenção do pensamento. Não tem maior realidade ou permanência que o próprio pensamento. Quando te criticas ou julgas a ti próprio, és vitima de uma ilusão. Crias dentro de ti uma divisão que na realidade não existe. É na desmontagem desta ilusão básica de dualidade e separação, que consiste aquele insight a que chamamos "despertar". Esta compreensão põe fim ao esforço volitivo do pensamento e promove a integração interior. O importante é não lutares contigo próprio. O teu ser é uno e não dual.

O que significa dizer que não há ninguém para compreender? Ninguém para se libertar? Ninguém para se iluminar? Significa em essência que é artificial e ilusória a separação entre a ação e o agente, entre o pensador e os seus pensamentos, entre o sujeito observador e o objeto observado. É inútil e ilusório estabelecermos dentro de nós mesmos uma fragmentação ou divisão em que uma parte procura consertar ou aperfeiçoar a outra. Tal como é ilusório procurar abstrair da compreensão uma entidade que compreende.  Este esforço está condenado ao fracasso. A entidade que recorda e avalia, que procura reter ou recuperar, não existe no exato momento da experiência. O experimentador e a experiência constituem uma unidade. Não existe um experimentador permanente separado das suas experiências transitórias. Mas o viver e experimentar permanece em meio à transitoriedade de todas as experiências.

Eu agora compreendo claramente a futilidade do apego e do esforço para reter a compreensão. Mas é inútil fazer estes registos tendo como motivação o desejo de tornar permanente esta compreensão. Não devo converter isto numa ideia a reter para servir de guia na ação. Eu não estou a produzir uma receita que me garanta a repetição desta claridade e de futuras compreensões. Eu não tenho o controle; de nada sou o autor. A compreensão vem a mim e apazigua a minha mente assim como os raios de sol aquecem a minha pele. Eu não sou o agente que deliberadamente faz e provoca aquele aparecimento. Apenas o vivencio e usufruo. É uma bênção gratuita. Tudo o que é verdadeiramente grandioso e significativo é gratuito. Não pode ser nada que eu tenha merecido ou conquistado. Por isso a vida do sábio é livre de esforço, de volição e das complicações do pensamento egocêntrico. O sábio vive com a mesma simplicidade e alegria, com a mesma espontaneidade e confiança de uma criança no seu estágio pré-moral.

Eu não posso através do esforço volitivo do pensamento, ressuscitar um estado em que o desejo, o esforço e o pensamento se encontravam ausentes. A compreensão surge do silêncio, brota da paz e do vazio. O importante é esta paz e este vazio no qual surge a compreensão. Ao procurar reter a experiência da compreensão, esse desejo constitui-se num empecilho e num obstáculo àquele vazio, àquela paz e quietude em que a compreensão pode desabrochar. "Não podemos reter a compreensão  de modo a garanti-la continuamente, afirmava Krishnamurti, o que tem continuidade não é o real; é simplesmente um hábito". Por isso dizia que "a verdade vem sem chamamento e nos surpreende como um ladrão". Não devemos recear morrer para todas as nossas experiências porque na verdade todas elas têm um findar. E a iluminação ou despertar não se constitui em qualquer excepção. A renuncia e desapego tem que ser absoluta e incondicional. A entidade que se liberta só existe enquanto não há liberdade; a entidade que se ilumina dissolve-se na iluminação; aquele que desperta desaparece no próprio despertar.

Toda a atividade egocêntrica, toda a preocupação em torno da própria pessoa, todo o esforço visando o auto-aperfeiçoamento, é um roubo àquela disponibilidade, àquele espaço de atenção e silêncio necessário para podermos receber a vida sempre imprevisível que acontece à nossa volta e da qual participamos. E esta atenção ou consciência, este espaço de disponibilidade e silêncio não precisa de ser construído, fabricado ou produzido através de qualquer esforço volitivo da nossa parte. Ele já é inato em nós, ou antes, é aquilo que realmente somos e jamais podemos perder. Não nos apercebemos dele apenas devido à distração que constitui a atividade egocêntrica do pensamento. Não o podemos converter num estado a realizar ou meta a atingir. É paradoxal mas só o vivenciamos verdadeiramente quando renunciamos ao desejo de o obter. Esta renúncia e o silêncio que a acompanha expurga a realidade de tudo aquilo que lhe é alheio. Liberta o nosso ser verdadeiro daquilo que é falso e ilusório. Nas palavras de Fernando Pessoa: "A renúncia é libertação; não querer é poder".    

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