A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






domingo, 17 de julho de 2011

Filosofia, intelecto e espírito

Nenhuma filosofia, por mais rigorosa, perfeita e elaborada, pode cumprir aquilo a que se propõe: abarcar a totalidade. Porque toda a filosofia é construída e armazenada no intelecto. E o intelecto não passa de um fragmento da totalidade. O intelecto não pode abarcar a totalidade. É a totalidade que integra o intelecto. Qualquer filosofia, por mais amplo e extenso que seja o campo abordado, será sempre algo semelhante a uma corrida num tapete rolante. Por mais kms que façamos, a distância percorrida estará sempre confinada a um espaço limitado. Quando percebemos isto, então a mente, o intelecto passa a funcionar não já como um armazém, mas apenas como um instrumento. Um instrumento ao serviço do espírito em vez de ser um empecilho. Quando a nossa ação se origina desde a perspetiva desta totalidade, então a utopia, o paraíso deixa de ser elaborado e formulado – passa a ser vivido! Talvez haja uma considerável redução do número de volumes pretendendo descrever a sociedade perfeita e de métodos e sistemas pretendendo criar o paraíso, mas teremos uma vida infinitamente mais rica, plena e satisfatória. Deixaremos de nos preocupar com a construção da sociedade perfeita. O mundo seguirá o seu caminho entregue a ele próprio. "Quem procura modificar o mundo, vejo, não o conseguirá. O mundo, vaso espiritual, não pode ser modificado”, diz-se no Tao Te King.

Alguém objectará: e o que fazeis vós ao escrever isto? Porventura não estais a filosofar? Respondo que isto não constitui qualquer excepção ao que foi dito acima. Isto não passa de palavras. Esta mensagem será abandonada por quem perceber plenamente o seu significado. Tal como se abandona um barco depois de alcançarmos a outra margem do rio ou se deita fora um mapa uma vez chegados ao local que ele indicava. Isto não passa de palavras. Mas Aquilo donde elas surgem poderá ser conhecido por quem estiver disposto a abandoná-las para abraçar Aquilo para o qual elas apontam. Cada palavra, cada frase aqui derramada não passa de sucessivas e renovadas tentativas para que o leitor possa ser levado a vislumbrar algo que se encontra além das palavras, da mente e do pensamento. Mas isso nenhuma quantidade e nenhuma forma de misturar palavras poderá adequadamente fazer.

Os diversos textos aqui oferecidos não representam diversos estágios ou etapas para alcançar um objectivo no final. Não representam as diversas partes de um todo à semelhança das peças de um puzzle. Em qualquer ponto deles se pode atingir plenamente a totalidade da mensagem que procuram transmitir. Tal como a água que uma criança apanha na concha das mãos contem já todo o segredo do oceano, a essência da mensagem aqui contida pode ser plenamente captada logo desde o seu início. Porque na realidade ela já está presente mesmo antes da primeira palavra aqui escrita. E é a mesma mensagem perene e essencial, comum aos místicos e profetas de todos os tempos e que se encontra no coração de todas as grandes religiões.

Não é minha intenção ser exaustivo. Não é necessário ser exaustivo para dizer tudo o necessário sobre um assunto. Não é necessário percorrermos um roteiro de todos os livros e mestres que trataram o tema. Ser exaustivo aqui seria apenas percorrer as diversas formas em que foi expressado o essencial. Mas esse é um esforço desnecessário. Não nos interessa mostrar erudição mas apenas apontar uma realidade fundamental, a verdade que tem sido descoberta e expressada de diversas formas. Não há nada mais fácil (e também mais inútil) do que gastar mil páginas com uma informação que está contida apenas em dez ou vinte. O que está a mais torna-se distração e a distração é ruído que impede a eficácia da transmissão. Esta não é uma mensagem para ser guardada. Se for corretamente recebida e compreendida, então ela não será conservada, mas assimilada. E tudo aquilo que é assimilado desaparece no processo de assimilação.

Devo dizer que é um exercício inútil e um desperdício procurar aqui inconsistências e contradições. Esta mensagem passa completamente ao lado daquele que dela se aproxima munido de espírito académico. Aqueles que veem aqui mais uma oportunidade para o fútil jogo de descobrir e vaidosamente denunciar paradoxos e inconsistências, sofrem precisamente da ilusão e do sono de que esta mensagem os procura despertar. Consistências e contradições, confirmações e refutações, fazem parte da dimensão que aqui somos convidados a abandonar. As palavras utilizadas e a forma em que elas são aqui colocadas não têm em vista a construção de um sistema consistente e irrefutável. Não se procura aqui dar satisfação ao intelecto mas antes ver para além do intelecto. Não se procura aqui construir mais um sistema para ser endeusado e sacralizado ou mais uma ideologia pela qual matar e morrer. Se o intelecto fosse o instrumento da felicidade que procuramos, já há muito teríamos estabelecido na terra o paraíso.

Se nalgum momento da leitura destas palavras dás contigo a lutar para compreender, a comparar ou procurar conciliar com o que julgas saber, a esforçar-te no sentido de atingires algo que elas possam ocultar (o que não passará de uma projeção da tua própria mente), então deixaste de estar em sintonia com a mensagem que elas procuram transmitir. Porque esta mensagem é precisamente um convite a renunciar a seja o que for que estás a procurar alcançar. Essa tua atividade, esse teu buscar, esse esforço para compreender e alcançar, o único instrumento que possui é a mente, o pensamento. Mas esta mensagem é um convite ao abandono da mente e do esforço volitivo do pensamento. És livre para aceitar ou não este convite, mas se o quiseres aceitar, terás que renunciar a qualquer especulação que procure antecipar aquilo que está para vir. Tens que estar disposto a mergulhar na incerteza e no desconhecido. Experimenta! O que tens a perder? Só tens esta vida para viver. E podes estar a ficar à margem do que de mais importante ela tem para te oferecer.

Claro que procurar garantias, procurar saber o que será a vida sem a persistente atividade do intelecto, sem o constante esforço da mente e do pensamento, é como um peixe procurar conhecer a experiência de uma cabra de montanha, ou esperar que um cadáver se possa pronunciar sobre o conforto do seu caixão. Afinal toda a especulação, toda a imaginação e antecipação se encontram na esfera da mente. Mas aqui a mente não tem qualquer participação. Não podes usar a mente para conhecer o que se encontra além da mente. Temos medo de abandonar um lixo que agora nos parece precioso, apenas porque não vemos a imensidão do que nos espera após esse abandono. Mas a verdadeira insanidade, como Einstein advertiu, é agir sempre da mesma forma e esperar resultados diferentes.

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