A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






quinta-feira, 6 de julho de 2017

O EGO E A BUSCA





Observa a tua experiência e vê o que sucede quando te dás a oportunidade de experimentar a desorientação do buscador espiritual que deixa de procurar uma experiência diferente da que ocorre neste preciso instante. Talvez sintas que o buscador se dissolve e surge a paz, aquela paz que era perseguida pelo buscador.” 
                                                                                                         - Adyashanti


 
Alguém uma vez afirmou que o peixe é a ultima criatura a descobrir a água. Há uma fábula Zen que conta a história de um pequeno peixe que, depois de ter ouvido um discurso sobre a água, se envolve numa busca interminável à procura desse elemento tão precioso. Muitas vezes é o próprio nomear e conceptualizar que gera os problemas que procura resolver. Já me tenho perguntado se haverá alguma forma de falar destas coisas sem que involuntariamente estejamos a alimentar o próprio ego que se pretende dissolver. É muito difícil ler ou ouvir discursos sobre espiritualidade, não-dualidade, paz, vazio, unidade, etc. sem que o ego se aproprie dos conceitos e os converta em novos objetos de busca e de desejo. Daí o perguntar: como posso alcançar, realizar, obter, etc.?

É urgente e fundamental perceber que a demanda por estas coisas jamais poderá ser satisfeita, porque o ego não vai estar lá para as poder experimentar e possuir. O ego é uma entidade fictícia que só surge ou se torna aparente quando há resistência ao que é, a favor de algum ideal. A mente, o individuo, o ego, ou como lhe queiramos chamar, é gerado pela própria resistência e compulsão. Só pode existir enquanto tiver um objetivo que perseguir, um desejo a realizar, alguma coisa que manter ou rejeitar. É por isso que o desejo de nos libertarmos do ego é apenas mais um dos truques que o ego utiliza para sobreviver. A luta e o esforço na dimensão psicológica sempre mantém e fortalece aquilo contra o qual lutamos.

Uma das nossas maiores dificuldades é que não percebemos a natureza ilusória do ego em toda a sua extensão. Podemos reconhecer a futilidade da atividade egocêntrica em busca de prazer, intoxicação, dinheiro, poder, prestigio, reconhecimento, etc., no plano mundano. Mas não percebemos que é a mesma atividade que funciona quando nos viramos para o chamado mundo espiritual e nos envolvemos nas mais diversas atividades a fim de conseguir o passaporte que nos leve ao nirvana ou à iluminação. Não percebemos que é a mesma entidade ilusória que se senta aos pés do guru, devora toda a literatura sagrada e formula todo o tipo de dúvidas e questões a fim de garantir que não comete qualquer erro em direção à meta espiritual. Julgamos este “ego espiritual” dotado de algum tipo de permanência ou superioridade, mas a sua natureza é tão ilusória como aquele ego mundano de que nos quisemos libertar.

E qualquer coisa que queiramos fazer a fim de corrigir esta situação, será sempre mais do mesmo. Toda a ação envolvendo o esforço e a vontade é sempre produto da mesma ilusão. Toda a substituição, todo o abandono do incorreto para abraçar o correto, toda a renúncia com o desejo de ganho, não passam de movimentos no interior da prisão. Quando queremos alcançar, possuir, controlar, reproduzir a experiência da ausência do ego, a mente é o único instrumento de que dispomos. Mas é um instrumento completamente inadequado. Porque a mente é o instrumento da intenção e da vontade. E a intenção e a vontade é a positiva manifestação do ego. O ego é o próprio centro do esforço e da volição. Só um “eu” pode querer acabar com o “eu”.

Então, que fazer?... Nada!... Simplesmente parar, relaxar!... Apenas observar, respirar, escutar, sentir!... E isto não é nenhum "fazer". É apenas o simples funcionamento natural. É isto que sugerem os grandes mestres como sendo a arte da meditação. Uma atitude de plena aceitação em que cessa toda a fuga, toda a luta e resistência e nos permitimos viver plenamente o momento tal como ele se apresenta.

A mente não pode fugir de si mesma! O próprio pensamento é sustentado pelo esforço que o procura eliminar. O jogo da mente é muito subtil, o ego tem uma enorme capacidade de metamorfose. Quando assumimos que temos uma mente doente e confusa e desejamos promover uma transformação, quem é a entidade que deseja promover tal mudança? É essa mesma mente doente e confusa! É a mesma mente e não uma mente diferente. Só há uma mente e está toda ela doente. Não há uma parte sã que vai curar outra parte aleijada. Eis porque o auto-aperfeiçoamento não passa de uma falácia ilusória. É como um cão correndo atrás da própria cauda. A paz e serenidade vem quando reconhecemos a nossa impotência e abandonamos o problema. Se formos verdadeiramente honestos, tudo o que podemos fazer é desistir de todos os nossos intentos e esforços, porque qualquer coisa que esse agente faça permanece dentro da esfera da ilusão.

O verdadeiro despertar acontece quando há um percebimento claro de que tu nada podes fazer para o produzires. A iluminação não é um resultado que possas conseguir em virtude de aplicares o método ou os ingredientes corretos. A transformação não pode ser deliberadamente calculada e produzida. Sucede de forma espontânea, na ausência de qualquer pretenso agente transformador, quando cessa toda a luta e resistência.

A autêntica liberdade significa a completa extinção de toda a necessidade de manipulação e controle. Quando nos confiamos ao colo divino já nada precisamos saber, nada precisamos fazer. A vida é puro gozo, puro fruir. Não é nenhum trabalho, nenhuma corrida de obstáculos, nenhum puzzle que temos de montar. É de uma simplicidade absoluta e magistral. Não é de admirar que a tal "iluminação" ou "despertar" seja tantas vezes associada a uma gargalhada de alivio e prazer!

Sem comentários:

Enviar um comentário