A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






terça-feira, 17 de setembro de 2013

Regressar à Própria Experiência


 "Se é de conhecimento ou de sabedoria que andamos à procura, o melhor será irmos procurar diretamente à fonte. E esta não é o erudito ou o filósofo, não é o mestre, o santo ou o professor, mas a própria vida - a experiência direta de vida.".
                                                                                Henry Miller, Os Livros da Minha Vida

Sendo a natureza humana a mesma que todos partilhamos, quem desvenda os seus segredos tem que forçosamente confluir para a mesma realidade e fazer as mesmas descobertas essenciais. Por isso é um erro achar que todas essas diferentes tradições, métodos, caminhos, religiões,...  podem apresentar propostas fundamentalmente diferentes se realmente pretendem despertar e libertar o ser humano. Às vezes apenas confundem e atrapalham quem procura ajuda e esclarecimento. Se realmente é o mesmo ser humano que se procura mapear e libertar, que diferença pode haver nas verdades apontadas?! No entanto, frequentemente essas diferentes propostas apresentam-se como se cada uma delas tivesse a posse exclusiva das chaves do paraíso! Tantos pretensos mestres, tantos diferentes métodos e caminhos, tantas diferentes linhagens e tradições!!... Talvez que esta infindável peregrinação por livros e mestres, seja apenas um adiamento do único caminho que conduz ao esclarecimento e à verdade: decidir-se a estudar e investigar no laboratório sempre disponível da própria mente e do próprio coração!

A que se referem esses mestres, esses seres despertos e iluminados? Referem-se a algo implícito na minha vida? Ao meu ser autêntico e original? Algo intrínseco à minha própria natureza? Se assim é, então não faz sentido buscá-lo uma vez que já é manifesto na minha experiência. Basta-me ser fiel ao meu próprio ser, ser autenticamente eu mesmo. Se assim não for, se é algo alheio à minha vida, algo que tenho que obter, então também não faz sentido buscá-lo, pois é do campo do impermanente. E o que é impermanente não pode ser realizado, pois o que se obtém sempre se perde. É só quando regresso à minha própria experiência, ao ser autenticamente eu próprio, que posso encontrar seja lá o que for que os mestres me possam prometer. Afinal, como declarou Terêncio dois séculos antes de Cristo, "Sou homem! Nada de humano me é estranho!".

Este constante formular de novos problemas, esta necessidade de atualização com os novos livros e professores, este constante buscar e questionar, esta interminável atividade de arranjar pulgas para se coçar,... de onde provém? Não será do impulso tirânico da procura de segurança, garantias e permanência? Mas que entidade poderá beneficiar de toda esta atividade? Quem é este "eu" que deseja o nirvana ou a iluminação? Quem é o individuo que constantemente busca e se interroga e deambula entre diferentes mestres, caminhos e tradições? Terá existência real ou é apenas um produto da imaginação? Para quê insistir em querer fixar a forma das nuvens, escrever na água ou construir castelos de areia à beira mar?

Hoje muito daquilo que se escreve sobre "espiritualidade" e "não-dualidade" apenas procura esclarecer e solucionar problemas que foram criados precisamente pelos livros e tentativas de expor estas matérias em palavras e conceitos. Uma mente confusa e iludida projeta a sua confusão em tudo aquilo para onde olha. Não é raro que as palavras apenas consigam multiplicar os problemas que procuram resolver. Afinal não serão as palavras que alimentam o pensamento onde se aloja o ego?  Há um conto Zen que ilustra este dilema através da história de um pequeno peixe que era feliz, nadava e brincava no oceano, até ao dia em que ouviu um discurso sobre a água e a sua importância. A partir de então ficou obcecado pelo desejo de descobrir e obter tão precioso elemento!?!  Foi assim que perdeu a sua paz e alegria.

Sempre será um dilema e um paradoxo procurar através das palavras, comunicar e partilhar com os outros uma realidade que as palavras nunca conseguem capturar. Como podemos nós através das palavras transmitir aquilo que só pudemos constatar quando nos livrámos de todas as palavras?! Só quando nos dispomos a aprender por nós próprios, quando não fugimos á nossa própria solidão, é que podemos estabelecer a relação correta com os livros e a leitura. Ramana Maharshi dizia que os livros apenas vieram corroborar aquilo que ele havia experimentado diretamente antes de os ter lido. Krishnamurti afirmava que lhe era insuportável ler sobre "filosofia" e "espiritualidade", apenas valorizava a experiência direta e livre de quaisquer conhecimentos prévios.

Não se trata de criar uma atitude de evitamento e recusa perante os livros e os mestres. O que se trata é de compreender a relação que com eles estabelecemos, a atitude com que deles nos aproximamos, pois esta atitude é que em grande parte irá determinar o que deles iremos receber. É a nossa atitude e os nossos motivos que podem fazer que eles sejam para nós uma fonte de esclarecimento ou de perturbação.

É o espírito  que dá vida às palavras, não são as palavras que dão vida ao espírito. Tu não podes ser informado primeiro para experimentar depois. Pelo contrário, só depois que experimentaste é que poderás compreender as palavras que o informam. Como lembra Herman Hesse"Ninguém pode ver nem compreender nos outros o que ele próprio não tiver vivido" .

Quando sabes escutar, de toda a gente podes aprender. Por isso se diz que "quando o discípulo está pronto, o mestre aparece". De outra forma como o poderia reconhecer?... Não é o mestre que produz em ti o despertar. É a tua intenção sincera de abrir a mente e o coração. Em nós mesmos é que descobrimos o essencial, através da investigação direta do nosso próprio viver e experimentar. Só depois é que os livros começam a fazer sentido. Na geografia terrena um mapa pode conduzir-nos a um tesouro, mas na busca de Deus, primeiro teremos que o encontrar, só depois podemos compreender os mapas que o indicavam.

A verdade é uma presença e não uma posse. A verdade não me pode ser dada por outrem. O contacto com a realidade é sempre direto e solitário. Dos outros tenho apenas o corpo e as palavras. Servimo-nos das palavras para comunicar. Mas em ultima análise, as palavras serão sempre uma barreira e não um veiculo. As palavras não transportam a realidade. As palavras não são o ser da realidade que é. Nada nos garante que estamos realmente em comunicação e comunhão com o outro. O outro procura comunicar utilizando palavras. Mas as palavras estão sujeitas a interpretação. A interpretação não é a ponte que nos leva à experiência do outro. É uma barreira que nos separa dessa experiência. Nenhum discurso sobre a água pode saciar a tua sede. Tens que levar os teus próprios lábios à fonte. E a experiência do contacto com a água é algo intimo e solitário. Por isso a comunhão só existe quando assumimos de uma forma plena e completa a solidão. Paradoxalmente, só na solidão pode ser encontrada a experiência plena e autêntica do amor unificador. Só na solidão deixamos de ser muitos para passarmos a ser um só. Apenas quem está só é que pode amar!

2 comentários:

  1. Só depois de sairmos em busca de quem somos é que nos damos conta de que não há caminho. Mas essa percepção só acontece depois desse impulso. E, se no inicio carregamos uma bagagem demasiado pesada, vamos aos poucos aliviando-nos dela, para chegar o momento em que nos encontramos totalmente 'nus'.
    No entanto, tudo o que nos afastou dessa percepção e que acreditávamos ser verdade, teve um papel preponderante, porque 'o caminho' faz-se de quedas e de pedras, de caos, de muitas 'noites escuras da alma'. É um recolhimento constante, e sim, é quando descobrimos que 'Apenas quem está só é que pode amar!'

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  2. Obrigado pelo seu comentário muito justo e oportuno Margarida! A verdade é que me revejo nele completamente! Como foi dito por um sábio Sufi: "Apenas aquele que iniciou a viagem em busca de Deus, o poderá encontrar. Mas o encontro acontecerá quando desistir da busca!"

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