A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






domingo, 11 de maio de 2014

Porque não podemos encontrar a Consciência?



René Magritte  -"Reprodução Interdita"

 "Não sei o que é conhecer-me. Não vejo para dentro.  Não acredito que eu exista por detrás de mim."  -Fernando Pessoa


Poucas expressões da "não-dualidade" ou do jargão espiritual são mais susceptíveis de confundir ou gerar errónea interpretação do que a sugestão de procedermos a uma rotação no foco da atenção e virá-la para o interior a fim de encontrarmos a sua fonte. Dizem-nos que para acedermos à nossa identidade essencial e conhecermos a natureza autêntica do que somos, devemos proceder a uma rotação de 180º no foco da nossa atenção dirigindo-a do exterior para o interior, dos objetos para a consciência. Quando ouvimos esta indicação podemos cair no erro de procurar ver ou conhecer a consciência do mesmo modo como vemos e conhecemos qualquer objeto da experiência. Procedemos a uma espécie de escrutínio interior em que fazemos desfilar mentalmente o reportório de tudo o que vemos e conhecemos até encontrarmos aquilo a que supostamente tal indicação se refere. Mas este modo de indagar está inevitavelmente condenado ao insucesso e à frustração. Qualquer coisa que possamos conhecer ou experimentar nunca será a consciência, porque a consciência já tem que estar presente antes de qualquer experiência ou conhecimento. Daí que o discurso da "não-dualidade" nos diga que "o buscador já é aquilo que ele busca", "a própria pergunta já é a resposta". Ao referir-se à nossa natureza essencial com palavras como "Ser", "Consciência", "Vazio", "Presença", "Absoluto", etc., o discurso não aponta para alguma coisa que precisamos encontrar, descobrir ou produzir através de algum tipo de atividade ou esforço. Refere-se ao próprio "Ver" e não a algo que tenha que ser visto. A própria formulação de uma questão, independentemente de qualquer resposta, já constitui em si mesma uma perfeita confirmação da presença da consciência.

A dificuldade é criada pela própria estrutura da comunicação verbal. Os nomes e palavras geram uma aparente dualidade e separação sujeito/objeto. Esta é uma inevitabilidade ao nível verbal. Mas a consciência nunca poderá ser objeto de experiência ou conhecimento. Jamais poderá ser convertida em objeto de busca ou indagação. Quem seria a entidade que levaria a cabo tal busca? Quem senão a própria consciência poderá ser já o sujeito desta indagação?  Não podemos estabelecer divisões na consciência. Seria como se a consciência se alienasse de si mesma e andasse em busca de si própria. Percebemos o absurdo desta posição? A forma como inadvertidamente nos enganamos e iludimos a nós próprios? O pleno reconhecimento da consciência não é o fim exitoso de uma qualquer atividade inquiridora. A própria existência dessa atividade, independentemente de qualquer resultado ou conclusão, é já quanto basta para que a presença da consciência esteja perfeitamente estabelecida. É um reconhecimento que não se encontra no fim, mas logo no inicio de qualquer busca ou inquirição. É uma verdade implícita que qualquer manifestação torna evidente. Se eu vejo alguma coisa é porque sou dotado do poder da visão. Mas a própria visão não é algo que eu possa ver.

Perceber a consciência como a essência daquilo que somos é apenas um simples reconhecimento. Não se trata de qualquer realização a alcançar ou qualquer experiência que possamos obter através de esforço, do pensamento ou da imaginação. A consciência não é divisível. É una e não dual.  Se aquela indicação (de dirigir a atenção para a própria atenção ou consciência) se converter para nós num problema, é preferível ignorá-la, pois na verdade não é uma expressão muito feliz. O efeito que ela produz no buscador assemelha-se muitas vezes àquela história  Zen do peixe que ingenuamente percorre o fundo do oceano em busca da água. É por isso que no Zen, andar em busca da nossa essência ou natureza budica, é comparado a procurar um boi montado no boi.

A nossa confusão deve-se aos equívocos provocados pelas palavras e comunicação. Quando te recomendam prestar atenção a tal ou qual som, imagem ou fenómeno, tu simplesmente viras para esse objeto a tua atenção; por isso, quando nos sugerem colocar a atenção na própria atenção, o nosso impulso imediato será procurarmos ver a atenção do mesmo modo. Mas tal propósito é irrealizável. A consciência ou atenção não é conhecida desse modo. O que se pretende é apenas que reconheçamos o facto dessa atenção existir,  a presença implícita da própria consciência, o facto inegável de sermos conscientes. Apenas isso! Esta constatação ou reconhecimento não depende de nenhum estado ou experiência em particular. É o fundo subjacente a toda experiência, estado, fenómeno ou percepção. Não importa que o teu estado seja de confusão ou de clareza, que sejas santo ou pecador, dominado pelo vicio ou pela virtude, visitado por anjos ou demónios, tudo é igualmente uma confirmação da presença da consciência, em si mesma vazia, transparente, incorruptível, imutável e atemporal. A ênfase é colocada não já nos objetos, mas antes nesta espaciosidade infinita e  consciente onde eles aparecem. É tão óbvio, tão simples! Significa o fim de toda a identificação. Eu não sou nenhum objeto, sou a luz que ilumina todos os objetos. Não sou nenhuma experiência, sou a capacidade de experimentar. Não sou feito de nada do que vejo, sinto ou experimento, mas todas estas coisas são feitas de mim, são manifestação e expressão da minha existência. Tal como as dunas são formações de areia. As ondas desfazem-se, a água permanece. Sou aquilo que permite e possibilita que todos os objetos e todas as experiências surjam e desapareçam. Sou a ausência que permite todas as presenças, o vazio que acolhe toda a existência.

Não podemos olhar e conhecer esta consciência do modo explicito e objetivo como tudo é visto e conhecido. Não interessa que a busca seja direcionada para o exterior ou para o interior, o que quer que encontremos nunca será a consciência. Uma lanterna jamais poderá surgir no foco de luz que dela própria emana. Um dedo poderá apontar para qualquer coisa menos para o próprio dedo que aponta. O olho não pode ver-se a si próprio. Uma câmara fotográfica nunca aparece na fotografia, no entanto a fotografia torna evidente a existência da câmara. Nenhum  objeto é a consciência. A consciência, no entanto, é a condição sine-qua-non do aparecimento de qualquer objeto. É uma verdade implícita e auto-evidente, pois mesmo ao pretender negá-la estamos a afirmá-la uma vez mais. A própria existência não pode ser negada sem que exista o autor de tal negação. Foi também isto que Descartes descobriu e procurou expressar no seu "Cogito". Não é possível alguém acreditar seriamente na afirmação "eu não existo", uma vez que terá que existir para produzir tal declaração. A apreensão da própria existência é intuitiva e imediata. A consciência é aquilo que jamais poderás ver ou conhecer objetivamente, mas cuja  realidade é mais evidente e indubitável do que qualquer coisa que possas ver ou conhecer. Tu nunca viste e jamais poderás ver os teus olhos, mas tudo aquilo que vês aponta para a verdade irrefutável da sua existência. Neste sentido podemos dizer que o mundo visível e fenoménico é apenas uma seta que aponta para o invisível. Podes duvidar da realidade de qualquer coisa que vês, mas jamais poderás duvidar da existência dos olhos que veem. A consciência é sempre evidente. A única evidência.

É apenas isto que se pretende fazer notar ao ser-nos sugerido virar a atenção para a própria atenção. Trata-se de um um simples corrigir de uma distração. Um convite a recordarmos a real natureza do que somos. Para que a consciência não mais se veja ofuscada ou absorvida pelas suas diversas manifestações ou expressões. Não faz apelo a qualquer atividade com vista à aquisição de algo que não esteja já presente. Não podemos converter a consciência noutro objeto de busca, uma vez que tanto esse esforço como aquele que o realiza, são eles próprios aparições temporárias e transitórias dentro dessa consciência que, na verdade, sempre somos. Esta presença consciente é que constitui o único elemento imutável e permanente ao longo desse fluxo de percepções intermitentes e passageiras que constitui toda a nossa experiência do mundo e da vida. Apenas Consciência é sinónimo de Realidade. Só a Consciência É. Tudo é feito de Consciência.  E como nos dizem os antigos Upanishades indianos: "Tat Tvam Asi" (Tu És Isso).

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Tu já és aquilo que procuras



“A verdade ou a realidade não pode ser armazenada, não pode ser retida -  não é acumulável. O valor de qualquer intuição, compreensão ou realização só pode estar na eternamente fresca presença do momento. A realização de ontem não vale um pimento, agora está morta,  já perdeu a sua vitalidade. É inútil procurar suster-se ou aferrar-se  a algum insight, compreensão ou realização, porque só no seu movimento existe a possibilidade de que surjam sempre novas e frescas intuições sobre a verdade ou a realidade. A ideia da iluminação ou auto-realização como um único evento, ou como um estado ou experiência permanente ou duradoura, é uma concepção errónea”.                                                                                                            Sailor Bob Adamson

O dilema e a tragédia de quase todos os buscadores é que, depois de terem um "insight" revelador, uma experiência de "despertar", ficam eternamente presos na armadilha de a procurar reproduzir ou capturar ou nela permanecer. O segredo está em não te aferrares a nada, nem mesmo a qualquer experiência de despertar. Abandona a tua memória de experiências, estados e realizações. São apenas cinzas mortas sem qualquer vida ou substância. A memória é apenas distração. A verdade é sempre viva e vibrante. Este momento nunca aconteceu. Nunca nada se repete.  "Jamais voltes ao lugar onde foste feliz!", diz uma canção, "...Nada do que por lá vires será como no passado. Não queiras reacender um lume já apagado."

Não te aferres a quaisquer palavras ou conceitos, a nenhum estado, experiência ou conhecimento, porque ao fazê-lo acabas inevitavelmente por ofuscar a consciência onde todos esses elementos de forma espontânea emergem. Poderás registar as palavras que brotam da claridade e pretendem traduzir a compreensão, mas elas jamais poderão substituir aquela claridade que as fez emergir. Não queiras guardar lembranças através de palavras mortas. Só podes guardar conceitos, não a verdade. O homem pensante não pode captar o homem vivente. É este que integra aquele.

A "coisa" como aparece no pensamento, como é invocada na memória, nada tem a ver com a experiência real, anterior e independente dessa invocação. Aquele que recorda a experiência não é o que a viveu e experimentou. São duas dimensões e duas realidades completamente diferentes e que se excluem mutuamente. A ideia da "coisa" nada tem a ver com a vivência da "coisa" sem ideia. A ideia é colorida pela memória psicológica da dor e do prazer, pelo mecanismo de rejeição e apego, aversão e desejo. Todo este processo é alheio ao sabor da experiência original. Por isso diz Shunryu Suzuki, o mestre Zen, "Tão pronto como vês algo e começas a intelectualizá-lo, aquilo que intelectualizas já não é o que viste!" Claro que não é o que viste! A mente não pode ver nada. O intelecto lida com símbolos e não com a realidade. O pensamento, sendo apenas um subproduto, uma pálida sombra da percepção, jamais a poderá substituir. A mente transporta-te para um mundo ilusório de conflitos, lutas e desejos completamente desnecessários.

Podes invocar a memória de um estado, uma experiência ou um "insight" com a intenção de o reviveres, de o ressuscitares, ou de conseguires a fórmula da sua permanência. Mas repara, quando originalmente essa experiência aconteceu, foi ela resultado de alguma atividade volitiva da tua parte?  Ela sucedeu na sequência de algum esforço deliberado tendo em vista produzi-la? Estava presente a memória de alguma experiência que se procurava ressuscitar? Foi produto ou consecução de algum desejo? Havia alguma intenção de alcançar algo, algum agente ou algum processo envolvido? Não, pois não? Ela surgiu de forma totalmente inesperada, não foi? Aconteceu por si mesma, de forma espontânea, sem qualquer intervenção consciente da tua parte. A verdade é que tu (a atividade do pensamento, do esforço, da volição, do cálculo e do desejo) não estavas aí quando isso sucedeu. A tua pessoa nunca foi necessária. Tu estavas completamente ausente. Então porque queres agora ser um interveniente no processo? Porque te queres tornar agora parte da equação? Não é essa atitude completamente ilógica e insana? Além disso, para quê despender esforço e energia em busca de uma experiência que pela sua própria natureza é efémera e transitória?

Andas em busca de Deus? Da felicidade? Da iluminação? De alguma suprema realização ou compreensão? Esquece tudo isso. As palavras geram uma aparente dualidade, uma aparente separação entre ti e a realidade. São estes conceitos que te impedem de ver que tu já és aquilo que procuras. Tudo está já presente. Nada da tua parte é requerido. Tudo é uma dádiva gratuita da consciência. Não podemos entrar no reino da felicidade, levando connosco a ganância, o apego e a cobiça. Esse reino só permite a entrada a quem se apresenta completamente despido no coração e no espírito. Neste caso a nossa vontade de posse e domínio só pode resultar na morte da galinha dos ovos de ouro. Erramos e perdemos ao procurar conhecer e conquistar. Jamais poderás ter a receita da felicidade, porque no reino da felicidade não entra aquele que sabe a receita e a procura aplicar. A felicidade é uma dádiva gratuita àquele que dela não se quer apropriar. Podes usufruir, mas jamais arrecadar.

Tu não existes como agente autónomo, separado do mistério e da graça divina. És a manifestação perfeita e inseparável desse mistério e dessa graça. És consciência clara, luz imaculada, eternamente presente e imutável. E tu jamais podes perder Isso, jamais podes esquecer Isso ou colocar qualquer distância entre ti e Isso. Porque Isso é o que tu és!  Não podes afastar-te de ti próprio! Jamais podes deixar de ser Isso que tu és! És sempre essa presença consciente, vazia e transparente que torna possível todo o ver e experimentar. Quando julgas que a perdeste ou esqueceste, só podes ter perdido ou esquecido algum conceito, algum estado, memória ou experiência que com ela identificaste. Mas foi apenas um equivoco. O que tu és jamais pode ser perdido ou esquecido. Porque só na presença disto, desta luz imóvel e imutável, é que podem suceder  e desfilar todos os estados transitórios, todas as experiências passageiras, toda a claridade e confusão, todo o lembrar e esquecer. Essa luz é o que tu és! Sempre foste essa luz! Nunca poderás ser outra coisa que não seja essa luz. O que deves valorizar não são as coisas que a consciência percebe mas sim a consciência que percebe as coisas.

Ver isto não é uma questão de aperfeiçoar os conceitos, de encontrar as palavras adequadas, de formular  definições mais perfeitas e rigorosas. O que acontece é que isto não pode ser captado mediante nenhum conceito, nenhum raciocínio, nenhum processo especulativo ou intelectual. Nenhuma ideia poderá jamais substituir o espírito capaz de a conceber.  Deixa de confiar na mente! A mente nada te pode mostrar. Ela apenas te ilude e confunde. Tens apenas de olhar e ver! Não tens de pensar! Ver, experimentar, sentir, escutar, ... antecede todo o pensar e raciocinar. Por mais fiel que seja a reprodução de um lago numa pintura, jamais nela  te poderás banhar. Não podes saciar a sede com a imagem da água. Trata-se de abandonar completamente toda a conceptualização e simplesmente olhar a realidade que está presente além de quaisquer nomes e palavras. É o simples acto intuitivo de apreensão daquilo que está presente na experiência imediata e não requer qualquer raciocínio ou elaboração. Daquilo que está ao dispor de qualquer criança, qualquer analfabeto, qualquer animal. É tão simples e tão óbvio que nos passa completamente despercebido. É como se alguém andasse desesperadamente à procura dos óculos que tem colocados sobre o nariz e que são precisamente o que lhe permite ver e procurar.

Lamentavelmente toda a tentativa de comunicar isto por palavras acaba involuntariamente por pôr em marcha o mecanismo que é necessário suspender para que isto possa ser visto. Porque o acto de percepção imediata da realidade acontece num nível diferente daquele que permite a tradução e interpretação verbal da experiência. Por isso talvez uma criança ou um homem sem instrução estejam em melhores condições de o apreender. Um homem que não aprendeu a ler poderá não entender a ementa dum restaurante, no entanto não verá diminuída a sua capacidade de se alimentar. Mas nem a mais completa e exaustiva das ementas poderá impedir que morra à fome um homem, se ele nada tiver para comer. As coisas não são as palavras que inventamos para as nomear. O símbolo não é a realidade. O ver e experimentar não é função do pensamento ou da atividade intelectual. Esta atividade tem que ser posta de lado para que o ver tenha lugar.

Estamos a apontar para aquilo que é o indicador mais primordial, óbvio, claro e evidente da nossa existência: a presença indubitável da consciência. Nada mais do que isto. Nós somos esta consciência. Ela é tudo o que sempre julgámos que precisávamos de buscar sem nos apercebermos que nunca dela estivemos separados. Só ela representa a realidade última e primeira pois é a condição que precede todo o fenómeno e experiência. Como poderias pensar, sentir ou perceber seja o que for, sem que primeiro esteja presente a consciência que te permite pensar os pensamentos, sentir os sentimentos, perceber e experimentar tudo aquilo que percebes e experimentas?

Aquilo que sempre buscaste é na verdade a única coisa que sempre tiveste!... Porque é aquilo que tu és! Aquilo que sempre foste e jamais deixarás de ser! Nunca serás nada menos e nada mais do que consciência. É só isto o que tens de reconhecer. Nada mais precisas compreender ou alcançar. Tudo o mais não passa de histórias e invenções da mente sem qualquer fundamento ou utilidade. Essas histórias não te podem ajudar, não te podem completar, nada te podem trazer ou acrescentar. Elas apenas te podem distrair do essencial. Tu já és completo, nada precisas buscar. A consciência que já és, é tudo o que precisas ser. É dela que se origina tudo aquilo que buscas e desejas, tudo o que alguma vez poderás almejar, sentir, viver, experimentar. Não precisas de um mapa para caminhar. Tu próprio já és a luz que ilumina o caminho.