A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






domingo, 17 de julho de 2011

Forma e Vazio - Mundo e Consciência



O ser ou existir implica a consciência. Para um objeto inerte não há qualquer diferença entre existir ou não existir. A sua existência ou inexistência faz diferença apenas para a consciência na qual ele se manifesta. Eu, consciência, sou auto-consciente, o objeto não o é. Daí que para o objeto não há qualquer diferença entre ser ou não ser, entre existir ou não existir. O objeto que eu presencio, tal como ele me aparece, não tem uma existência separada das próprias qualidades com que a mente pode ver e conceber. É apenas um conjunto de sensações que experimento e com as quais o identifico. Estas sensações provam a minha existência, não a do objeto. O objeto existe apenas para a consciência que o percebe, não existe para si próprio. Tal como é assinalado pela filosofia Vedanta e pelo budismo, o mundo manifesto não tem qualquer realidade intrínseca, não existe de forma autónoma e independente. Só a consciência é auto-consciente. Só a consciência existe de forma absoluta. O mundo tem existência meramente relativa e conceptual. Não se trata de estabelecer aqui alguma conclusão, solipsista ou de outro género qualquer. Toda a conclusão equivale a entrar num barco destinado a naufragar. Nenhuma conclusão se requer. Apenas constatamos que a separação entre interior e exterior, espírito e matéria, sujeito e objeto ,não passa de uma suposição arbitrária. Tudo surge num mesmo e único espaço consciente, em si mesmo vazio, informe, ilimitado, omnipresente e atemporal. Cai a ilusão da dualidade, a ilusão da separação entre nós e o mundo. O mundo que percebemos não pode existir sem a consciência que o percebe.

Procurar o que somos realmente para além da experiência transitória, é como ir removendo sucessivamente as cascas de uma cebola. Quando atingimos o centro, aquilo a que chegamos é coisa nenhuma, um perfeito vazio. Mas este vazio não é um vazio feito de nada, mas sim de consciência. É um espaço infinito de silêncio e disponibilidade onde todo o universo se manifesta. Este espaço consciente é o que nós somos. Nada mais, nada menos do que esta consciência. A afirmação contida nos antigos Upanishades, "Tat Tvam Asi" (Tu és Isso), é a verdade para a qual apontam todas as autênticas tradições espirituais e religiosas que afirmam a não-dualidade da realidade. Por isso diz  Meister Eckhart num dos seus sermões: "O olho com que vejo Deus, é o mesmo olho com que Deus me vê; o meu olho e o olho de Deus são um único olho, um único conhecer, uma única visão, um único amor." A existência indubitável da consciência constitui o ponto de partida e o ponto de chegada de toda a auto-inquirição e de toda a jornada em busca de Deus, do auto-conhecimento e da natureza da realidade.

Querer experimentar a consciência, o vazio, o espaço, de forma abstrata e independente dos objetos ou das formas que nele aparecem, é como procurar ter a percepção da luz separadamente dos objetos que ilumina. Esta é uma tarefa inglória, uma impossibilidade. Tal desejo surge em virtude da constatação da permanente mutabilidade dos objetos. Mas a consciência, aquele espaço infinito, aquele vazio original, surge sempre ligado aos objetos ou formas da experiência transitória. O permanente surge sempre ligado ao impermanente. A consciência e o seu conteúdo existem de forma unitária, como uma unidade inseparável, uma totalidade que só de forma verbal e artificial pode ser dissociada ou dividida. Sem a luz os objectos não poderiam ser presenciados. Mas são os objectos que, de alguma forma, nos conscientizam da luz que os ilumina e transcende. Nós não vemos a luz, vemos apenas os objetos por ela iluminados. Mas o facto de serem vistos torna óbvia e irrefutável a implícita presença dessa luz ou consciência que os percebe.

Esta presença consciente, não sendo um objeto de experiência, é no entanto uma realidade mais sólida e evidente do que qualquer objeto experimentado. Apenas a consciência é real. Só ela existe de forma indubitável e permanente. A realidade que qualquer manifestação fenoménica torna inegável não é a do  objeto percebido, mas sim a da consciência em que ele aparece. Esta implícita certeza é igual à primeira descoberta de Descartes. Todo o objeto aponta para a indubitável certeza da existência do sujeito. E nenhum objeto pode ser concebido como tendo uma existência real, autónoma e independente da sua manifestação na consciência que o percebe. Quando se diz que o mundo fenoménico é irreal, ilusório ou aparente, não devemos ver aí nenhum mistério transcendental que temos de desvendar. Significa, na perspetiva budista da realidade, a impermanência e interdependência de todos os fenómenos. Por isso só o repouso na vacuidade torna possível a infinita flexibilidade que nos permite estar em sincronia com a célere e permanente mudança do real.

Filosofia, intelecto e espírito

Nenhuma filosofia, por mais rigorosa, perfeita e elaborada, pode cumprir aquilo a que se propõe: abarcar a totalidade. Porque toda a filosofia é construída e armazenada no intelecto. E o intelecto não passa de um fragmento da totalidade. O intelecto não pode abarcar a totalidade. É a totalidade que integra o intelecto. Qualquer filosofia, por mais amplo e extenso que seja o campo abordado, será sempre algo semelhante a uma corrida num tapete rolante. Por mais kms que façamos, a distância percorrida estará sempre confinada a um espaço limitado. Quando percebemos isto, então a mente, o intelecto passa a funcionar não já como um armazém, mas apenas como um instrumento. Um instrumento ao serviço do espírito em vez de ser um empecilho. Quando a nossa ação se origina desde a perspetiva desta totalidade, então a utopia, o paraíso deixa de ser elaborado e formulado – passa a ser vivido! Talvez haja uma considerável redução do número de volumes pretendendo descrever a sociedade perfeita e de métodos e sistemas pretendendo criar o paraíso, mas teremos uma vida infinitamente mais rica, plena e satisfatória. Deixaremos de nos preocupar com a construção da sociedade perfeita. O mundo seguirá o seu caminho entregue a ele próprio. "Quem procura modificar o mundo, vejo, não o conseguirá. O mundo, vaso espiritual, não pode ser modificado”, diz-se no Tao Te King.

Alguém objectará: e o que fazeis vós ao escrever isto? Porventura não estais a filosofar? Respondo que isto não constitui qualquer excepção ao que foi dito acima. Isto não passa de palavras. Esta mensagem será abandonada por quem perceber plenamente o seu significado. Tal como se abandona um barco depois de alcançarmos a outra margem do rio ou se deita fora um mapa uma vez chegados ao local que ele indicava. Isto não passa de palavras. Mas Aquilo donde elas surgem poderá ser conhecido por quem estiver disposto a abandoná-las para abraçar Aquilo para o qual elas apontam. Cada palavra, cada frase aqui derramada não passa de sucessivas e renovadas tentativas para que o leitor possa ser levado a vislumbrar algo que se encontra além das palavras, da mente e do pensamento. Mas isso nenhuma quantidade e nenhuma forma de misturar palavras poderá adequadamente fazer.

Os diversos textos aqui oferecidos não representam diversos estágios ou etapas para alcançar um objectivo no final. Não representam as diversas partes de um todo à semelhança das peças de um puzzle. Em qualquer ponto deles se pode atingir plenamente a totalidade da mensagem que procuram transmitir. Tal como a água que uma criança apanha na concha das mãos contem já todo o segredo do oceano, a essência da mensagem aqui contida pode ser plenamente captada logo desde o seu início. Porque na realidade ela já está presente mesmo antes da primeira palavra aqui escrita. E é a mesma mensagem perene e essencial, comum aos místicos e profetas de todos os tempos e que se encontra no coração de todas as grandes religiões.

Não é minha intenção ser exaustivo. Não é necessário ser exaustivo para dizer tudo o necessário sobre um assunto. Não é necessário percorrermos um roteiro de todos os livros e mestres que trataram o tema. Ser exaustivo aqui seria apenas percorrer as diversas formas em que foi expressado o essencial. Mas esse é um esforço desnecessário. Não nos interessa mostrar erudição mas apenas apontar uma realidade fundamental, a verdade que tem sido descoberta e expressada de diversas formas. Não há nada mais fácil (e também mais inútil) do que gastar mil páginas com uma informação que está contida apenas em dez ou vinte. O que está a mais torna-se distração e a distração é ruído que impede a eficácia da transmissão. Esta não é uma mensagem para ser guardada. Se for corretamente recebida e compreendida, então ela não será conservada, mas assimilada. E tudo aquilo que é assimilado desaparece no processo de assimilação.

Devo dizer que é um exercício inútil e um desperdício procurar aqui inconsistências e contradições. Esta mensagem passa completamente ao lado daquele que dela se aproxima munido de espírito académico. Aqueles que veem aqui mais uma oportunidade para o fútil jogo de descobrir e vaidosamente denunciar paradoxos e inconsistências, sofrem precisamente da ilusão e do sono de que esta mensagem os procura despertar. Consistências e contradições, confirmações e refutações, fazem parte da dimensão que aqui somos convidados a abandonar. As palavras utilizadas e a forma em que elas são aqui colocadas não têm em vista a construção de um sistema consistente e irrefutável. Não se procura aqui dar satisfação ao intelecto mas antes ver para além do intelecto. Não se procura aqui construir mais um sistema para ser endeusado e sacralizado ou mais uma ideologia pela qual matar e morrer. Se o intelecto fosse o instrumento da felicidade que procuramos, já há muito teríamos estabelecido na terra o paraíso.

Se nalgum momento da leitura destas palavras dás contigo a lutar para compreender, a comparar ou procurar conciliar com o que julgas saber, a esforçar-te no sentido de atingires algo que elas possam ocultar (o que não passará de uma projeção da tua própria mente), então deixaste de estar em sintonia com a mensagem que elas procuram transmitir. Porque esta mensagem é precisamente um convite a renunciar a seja o que for que estás a procurar alcançar. Essa tua atividade, esse teu buscar, esse esforço para compreender e alcançar, o único instrumento que possui é a mente, o pensamento. Mas esta mensagem é um convite ao abandono da mente e do esforço volitivo do pensamento. És livre para aceitar ou não este convite, mas se o quiseres aceitar, terás que renunciar a qualquer especulação que procure antecipar aquilo que está para vir. Tens que estar disposto a mergulhar na incerteza e no desconhecido. Experimenta! O que tens a perder? Só tens esta vida para viver. E podes estar a ficar à margem do que de mais importante ela tem para te oferecer.

Claro que procurar garantias, procurar saber o que será a vida sem a persistente atividade do intelecto, sem o constante esforço da mente e do pensamento, é como um peixe procurar conhecer a experiência de uma cabra de montanha, ou esperar que um cadáver se possa pronunciar sobre o conforto do seu caixão. Afinal toda a especulação, toda a imaginação e antecipação se encontram na esfera da mente. Mas aqui a mente não tem qualquer participação. Não podes usar a mente para conhecer o que se encontra além da mente. Temos medo de abandonar um lixo que agora nos parece precioso, apenas porque não vemos a imensidão do que nos espera após esse abandono. Mas a verdadeira insanidade, como Einstein advertiu, é agir sempre da mesma forma e esperar resultados diferentes.