A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






terça-feira, 29 de abril de 2014

Nada precisas resolver

A maioria das publicações sobre a não-dualidade consiste na transcrição de diálogos e exposições orais que emergem de forma espontânea em palestras, encontros (Satsang) ou outras situações. Geralmente são respeitantes à superação de uma qualquer dificuldade ou obstáculo apresentado por um buscador em particular. As palavras e conceitos que então se utilizam não devem ser erigidos em verdades absolutas com as quais qualquer outra exposição verbal deverá concordar. As palavras e conceitos terão sempre um valor meramente relativo e contextual. Não existe qualquer conhecimento, doutrina ou conclusão definitiva que elas procurem transmitir. A sua finalidade é pragmática. São apenas um instrumento provisório que poderá ser útil para superar uma dificuldade ou esclarecer uma situação em particular. O que se procura é desmascarar o auto-engano, provocar um  despertar ou tomada de consciência das múltiplas formas em que a mente nos procura iludir. 

Nesta jornada de auto-conhecimento e libertação, todas as palavras, todos os conceitos e declarações verbais só poderão ter como destino final o seu próprio abandono e superação. A sua função é meramente instrumental. São como aquelas toalhas de limpeza descartáveis que se jogam no lixo depois de terem cumprido a sua função. A tua própria compreensão da verdade não tem de ser de acordo com as palavras de qualquer mestre, professor, doutrina ou tradição. A verdade e a compreensão não te virão através do esforço por decifrar qualquer dessas declarações, por maior que seja a autoridade ou veneração que concedas ao seu autor.  As palavras só são significativas quando brotam do contacto direto com a realidade, isto é, quando são expressão do teu próprio entendimento, do teu próprio sentir e experimentar. Se a tua vida não está de acordo com as palavras de um livro, o que deves queimar é o livro e não a tua vida, pois a tua vida é que é real. A teoria não se pode sobrepor à experiência que é a fonte de toda a teoria. Não é a verdade que provém das palavras mas antes as palavras é que devem ser submetidas ao julgamento da verdade. Daí a sentença de um antigo filósofo grego: "Indaga as palavras a partir das coisas e não as coisas a partir das palavras!".  

Quando o teu desejo por certeza e segurança te leva ao apego a crenças, símbolos e palavras, confundes os conceitos com a realidade. Então passas a exigir que a realidade se ajuste às tuas palavras em vez de ajustares estas à realidade. Entregas-te à construção de um castelo conceptual que te garanta a segurança e certeza de estares na posse da verdade. Mas tal exigência jamais poderá ser satisfeita e constantemente te verás na necessidade de o defender contra o assalto de dúvidas e contradições. Porque as palavras e conceitos não passam de ferramentas limitadas e imperfeitas para representar a realidade. Quando julgas que a compreensão e a verdade poderá provir dos símbolos e do pensamento conceptual, estás a exigir dos conceitos e palavras algo que  eles jamais te poderão dar. O estudo de um mapa jamais poderá substituir a experiência real de pisar um território.

As palavras que se revelaram esclarecedoras num determinado contexto, podem ser completamente disfuncionais num contexto diferente. Além disso como podemos saber se não estaremos a atribuir às palavras de alguém um significado diferente daquele que ele lhes atribui? Quanto mais enigmáticas e estranhas te parecerem as expressões que julgas ter de entender, mais te irás esforçar no sentido de as decifrar. Mas quanto mais intensa for esta atividade, maior a confusão em que te verás enredado. Porque não podes captar a essência de uma comunicação de forma abstrata e descontextualizada. Essa ruminação apenas te irá afastar daquilo que é verdadeiramente essencial: permanecer centrado nessa límpida e clara presença consciente onde tudo se origina e a que nada pode ser acrescentado ou subtraído. Tu já és essa presença consciente, sempre perfeita, eternamente brilhante e completa. Nada precisas buscar ou entender. Essa consciência que tu és é tudo o que tens de recordar.

Encontras-te envolvido numa batalha interior procurando conciliar palavras e conceitos? A desatar nós e clarificar significados? A deslindar aparentes paradoxos e contradições? Estás a confundir o mapa com o território. A desperdiçar energia num conflito supérfluo e inútil que em nada te poderá beneficiar. O salto para fora da mente não pode acontecer procurando satisfazer as suas intermináveis pretensões e exigências. Aquilo que o pensamento constrói, o pensamento pode destruir. A mente está sempre ocupada em destruir as suas próprias construções, sempre encontra mais uma pergunta para colocar, mais um problema para resolver. Desse jogo depende a sua própria sobrevivência. E entretanto a tua atenção deixa de estar focada no mundo da realidade e és arrastado para um mundo virtual e ilusório, meramente conceptual. É como se estivesses a assistir a um Western na TV e te atirasses para debaixo da mesa em busca de proteção dos tiros que acontecem no ecrã, ou te levantasses freneticamente em busca do impermeável e do guarda-chuva quando assistias ao filme "Singing in the rain". A realidade está além da mente, dos seus jogos e dilemas e da sua interminável busca por respostas.

Para qualquer afirmação podemos sempre encontrar um sentido em que é verdadeira e outro em que é falsa, um ponto de vista que a sustenta e outro que a refuta, uma perspetiva que a confirma e outra que a rejeita. A mente alimenta-se deste inevitável dilema verbal. Irá sempre encontrar um novo problema para cada solução. Mas os paradoxos, os problemas e contradições só acontecem ao nível conceptual, dizem apenas respeito a símbolos e palavras, não afetam a realidade. O conflito nunca é entre verdades mas entre representações. Os problemas, dúvidas e confusões são sempre respeitantes ao mapa, nunca ao território. A realidade nunca é paradoxal ou contraditória em si mesma. A realidade é o que é, independentemente das palavras que a pretendam descrever ou traduzir. Nenhuma confirmação lhe pode dar maior solidez e nenhuma refutação a pode beliscar. Um juízo falso pode ser desmontado no confronto com a realidade, mas a realidade jamais poderá ser determinada por qualquer juízo a seu respeito. Tu não tens que desperdiçar a tua energia a resolver problemas que apenas existem para uma entidade fictícia num mundo ilusório e irreal. Nada de fundamental se perde pelo facto de renunciares à luta e ao esforço para apreenderes palavras e conceitos. Tens apenas de despertar para a realidade imediata e presente que se encontra aqui, agora, e é independente de formulação verbal. O que é real é sempre claro e evidente e nunca é problemático ou contraditório porque não é um conceito mental.

De acordo com um provérbio Zen : "Se tu compreendes, as coisas são o que são; se não compreendes, as coisas são  o que são!". Ou como dizia Ma-Tsu, o mestre zen: "A mente que não compreende é o Buda, não existe outra!". Isto significa que a natureza essencial da consciência que tu és, não pode ser afetada por qualquer dúvida, confusão ou incerteza e não é susceptível de qualquer aperfeiçoamento ou modificação. É sempre perfeita, completa e luminosa. O segredo da conexão com a misteriosa inteligência que rege o  universo tem muito mais a ver com aceitação e confiança do que com luta e resistência.

As palavras e conceitos geram uma separação ilusória.  Elas enganam-te e iludem-te. Então julgas ter que buscar algo que sempre tiveste. É como se fosses um peixe às voltas no oceano em busca da água onde nada. Tu não estás separado do que julgas andar em busca. O teu ser é uno e não dual. Tu próprio és a verdade que sempre perseguiste. Nada precisa ser modificado ou melhorado, nenhuma pergunta respondida, nenhum problema precisas resolver. Não tens que lutar contra a confusão ou esforçar-te por buscar clareza. Aquilo que é verdadeiro e essencial não é uma realização a alcançar porque nunca foi perdido.

O discurso do sábio não pretende satisfazer o teu desejo de segurança e de saber, mas antes aniquilá-lo completamente. A busca e o esforço são sempre inúteis pois não existe a entidade que deles possa beneficiar. Não existe nenhum pensador que subsista quando o pensamento desaparece. Nada existe de estável no aparente individuo separado. Toda a atividade egocêntrica em busca de respostas, todo o apego e acumulação, todo o avanço e retrocesso em torno desta figura imaginária, tem a mesma utilidade e solidez de um livro escrito nas águas passageiras de um rio. É como vapor que se dispersa e desaparece. Por isso a busca é inútil e jamais pode ser satisfeita. Porque o ego que ela pretende preencher é totalmente ilusório. Despertar da busca significa simplesmente perceber que o buscador nunca teve existência real. Nunca teve maior consistência que um pensamento.

Não convertas estas palavras num outro problema a deslindar. Quem seria a entidade a lutar para o resolver? Não existe o individuo que supostamente iria beneficiar dessa atividade. Repara como o pensamento se encontra às voltas numa luta consigo próprio. Tal luta significa apenas que acreditas na existência de alguém (tu) que a pode travar e que através dela poderá evoluir ou crescer. É essa entidade que tem uma existência meramente fictícia, fantasmagórica, sem qualquer estabilidade ou permanência, nenhuma substância ou realidade. Todas as construções do pensamento têm a mesma consistência de figuras desenhadas na areia à beira-mar. São como nuvens dispersas pelo vento. 

Permanece céptico e vigilante em relação ao canto de sereia da mente. Ela constantemente irá procurar atrair a tua atenção e envolver-te na resolução de problemas imaginários para uma entidade imaginária. Não tens que levar a sério as suas invenções. Tudo não passa de uma criação do pensamento. Evita sucumbir à sua sedução. Não permitas que a tua atenção seja absorvida pelos jogos da mente, pelos seus dilemas e sugestões. Permanece ancorado naquela realidade que não é produto da fábrica mental. Dirige a atenção para as sensações presentes no corpo. Através da consciência corporal podes sempre conectar-te com a realidade presente aqui e agora. Escuta o bater do coração, observa o teu próprio respirar, percebe os estímulos sensoriais do ambiente. Não permitas que o riso das crianças e o canto dos pássaros te passem despercebidos. Que a tua atenção seja como o ar que invade uma habitação: que nenhum recanto por mais escondido, que nenhum espaço por mais afastado deixe de por ela ser preenchido. Sente a carícia do sol, a brisa do vento e o chão que pisas ao caminhar. Isto liberta o foco da prisão da mente e traz a atenção para aquilo que é real e presente. Coloca-te sempre num plano superior ao burburinho da mente. A mente é atraída pelas suas próprias construções, mas a consciência observa a própria mente. Cria alguma distância. Não te identifiques. Sê um observador de ti próprio. Nada disto és tu. Nada disto te pertence. És uma ausência plenamente presente.

Questiona a mente, os seus produtos e atividades, por mais atraentes e irresistíveis que eles te possam parecer. Podes sempre abandonar os problemas que ela insiste em te colocar, renunciar às batalhas em que ela te quer envolver. Pergunta a ti mesmo se realmente necessitas da segurança que ela te promete oferecer. Decide-te simplesmente a prescindir das soluções que o pensamento constantemente está ocupado a procurar. Poderás descobrir que nunca precisaste delas, que a mente apenas te pretende enganar. Somente aquilo que permanece na ausência da mente, aquilo que resiste ao teste do silêncio, é que é real.