A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






quinta-feira, 10 de outubro de 2013

"MuShin" - Considerações sobre o estado de "Não-Mente"



De uma forma mais ou menos consciente, os esforços do buscador quase sempre são direcionados ao aperfeiçoamento do conteúdo da mente, à busca da filosofia e das respostas mais rigorosas e perfeitas, à elaboração da suprema norma de conduta, algum principio orientador, alguma fórmula, algo que possa adquirir e usar. A plena maturidade vem com a compreensão de que qualquer apego ou aquisição se converte num estorvo. Qualquer bagagem ou acumulação limita a liberdade e turva a consciência como a sombra escura que limita o circulo brilhante da lua. Maturidade é compreender que a realização suprema não é algo que se possa alcançar ou adquirir, mas antes um estado original que importa reconhecer e em que podemos confiar. O importante não é o conteúdo perfeito mas antes o vazio perfeito. "A melhor coisa não é melhor do que nada!", diz um provérbio Zen.

Os mestres Taoistas e Zen-Budistas descrevem muitas vezes o estado natural como um estado de "Não-Mente" (MuShin em japonês). É um conceito poderoso pela sua radicalidade e poder descritivo. Refere-se a um estado de pura percepção, isenta de verbalização ou pensamento. É o simples estado natural de total disponibilidade, abertura e "não-saber". Nenhuma religião, nenhuma doutrina, nenhuma crença, nenhuma segurança, nada em que se apoiar. O encontro com os fenómenos e acontecimentos é totalmente vulnerável e inocente, porque liberto de qualquer mediação pelos mecanismos de tradução da experiência. Ausência da mente significa a ausência do ego, do pensamento volitivo. É o silenciar das reações dum "eu" separado, daquele comentador de fundo constituído de expectativas, julgamentos, desejos, esperanças e temores; o fim do cálculo em torno da aprovação ou rejeição social; o calar dessa voz que persiste em nos dizer que poderíamos ter agido melhor no passado ou como deveremos agir no futuro.

A iluminação ou o despertar não tem que ver com alguma classe de eventos ou estados particulares. A iluminação não diz respeito à situação em que te encontras, à forma como te sentes ou te comportas. Não existe uma categoria correta de estados iluminados em oposição àqueles que excluem a iluminação. O que desaparece é a divisão interior, a divisão entre um "eu" que vive e um "eu" que ensina a viver. Deixa de estar presente o comentarista ou censor que julga, avalia ou compara. Existe apenas um fluir natural e espontâneo, um sentir, viver e agir puro e simples. Não mais existe a entidade fictícia que se separa da experiência para a julgar, condenar ou justificar, aquela voz que sabe e idealiza e que sempre olha para aquilo que é através de uma ideia de como deveria ser. Cessa a aparente atividade de um "eu" imaginário, de um agente ilusório a pretender controlar, modificar ou manipular.

Importa compreender que não se trata da aquisição de qualquer tipo de perfeição, sabedoria ou virtude. É um estado totalmente isento de conteúdo, puro vazio. A denominação "Não-Mente" procura precisamente evitar  a confusão da dualidade e da luta entre os opostos. É o fim do conflito entre a aceitação e a recusa, da luta entre o que é e o que deveria ser. Cessa toda a possibilidade de rejeição e escolha, toda a  comparação entre o que penso que sou e algo em que me deveria converter. É o fim da "auto-consciência" com as suas atividades calculistas e protetoras em torno de um ego, de uma figura imaginária.

O estado de "Não-Mente" é um estado atemporal, dado que sem a mente o tempo não existe. Portanto não é nenhum resultado a que se possa chegar ou algo em que se possa pensar. Quando este salto acontece deixa de haver qualquer entidade para saber que alcançou algo. Não há ninguém para reclamar direitos de autor, ninguém para reivindicar coisa nenhuma. No estado de não-mente não existe o conhecimento do "estado de não-mente". Não se armazena qualquer experiência nem se elabora qualquer receita. Eu não posso conhecer ou produzir conscientemente um estado em que está ausente o mecanismo que permite nomear e conhecer. Por isso dizemos que não existe o individuo que dele possa beneficiar. O "eu" está de todo ausente. Há apenas o usufruir e experimentar, sem ninguém que usufrua ou experimente. Tendo cessado as atividades do ego, do pensamento como processo de vir-a-ser ou de tornar-se algo, desaparece o individuo separado capaz de atuar, conhecer ou produzir. O conhecimento está ausente, apenas o Ser está presente. Existe ação, mas não existe nenhum agente. O estado de "Não-Mente" é um estado de perfeita harmonia e unidade. Mas não é uma meta a lograr ou um resultado que tenhas alcançado. Existe precisamente no começo e não no fim. Só pode ser um despojamento, nunca uma aquisição.

O conhecimento conceptual implica sempre separação e dualidade. O conhecimento é como um dedo que aponta para fora, originando o experimentador separado da experiência, o sujeito separado do objeto, o agente separado da ação. Esta divisão artificial termina quando há perfeita quietude mental, silêncio. Neste estado de quietude não existe qualquer pensamento ou entidade para verbalizar ou conhecer o estado de consciência experimentado. O estado de "Não-Mente" não é algo que se possa obter ou conhecer, mas apenas ser e vivenciar. Daí que sempre se nos faça a advertência de que as palavras são como setas indicadoras. Elas podem apontar uma direção, mas terão de ser abandonadas quando entramos no caminho apontado. Uma metáfora budista diz-nos que, uma vez alcançada a outra margem de um rio, não carregamos às costas o barco que nos serviu na travessia. As palavras são como uma porta que é deixada para trás uma vez atravessada. Elas não nos podem acompanhar no salto que nos estabelece na pura realidade. A realidade é anterior a todas as palavras. O oceano da verdade é como um poço de ácido corrosivo em que somos completamente dissolvidos quando nele mergulhamos: nós desaparecemos e resta apenas a realidade. Apenas este fluir interminável sem causa nem propósito a que chamamos viver,... e uma alegria transbordante a impregnar o ser e o experimentar.

O estado de "Não-Mente" não pode ser uma ideia a aplicar ou objetivo a atingir. Se eu tiver uma concepção mental do estado de "Não-Mente" (o que seria uma contradição nos termos), então a minha experiência será avaliada de acordo com tal concepção. Esta atividade faz ainda parte das maquinações ilusórias do ego. Na ausência da mente cessa toda a avaliação e escolha. O "eu" simplesmente se dissolve numa fusão total com o ritmo do próprio Cosmos. É um estado de total imobilidade atemporal, de plena comunhão com aquilo que é, com  o que está. A atenção não mais se deixa capturar por algum momento fixo no tempo, mas permite-se fluir harmoniosamente com a perpétua e célere transformação da realidade emergente. Não significa que tu te tornaste inteligente. Apenas deixaste de ser um obstáculo no caminho da inteligência.

O estado de "Não-Mente" não pode ser reconhecido, uma vez que está ausente o mecanismo que permite comparar, avaliar ou reconhecer. É por isso que toda a atividade e esforço em torno do auto-aperfeiçoamento, toda a luta procurando aniquilar o ego ou obter a "iluminação", não passa de um inútil desperdício de energia. É tão fútil como o cão procurar agarrar a própria cauda ou uma criança tentar ultrapassar a própria sombra. O silêncio jamais poderá coexistir com a entidade que o procura alcançar, porque o silêncio aniquila completamente aquele que deseja  obter o silêncio. Só quando te retiras da frente de um espelho é que ele deixa de refletir a tua imagem, mas então tu já não te encontras aí para confirmar essa ausência.

O que temos de compreender é qual o vento, a água que ao banhar a mente a liberta de todo o passado e condicionamento. Por certo que não poderá ser nada vindo da própria mente, da memória ou da especulação intelectual. Não se pode pensar no "estado sem pensamento". Há uma realidade que só toma forma no imediato plano existencial. É uma dimensão que o pensamento não pode antecipar ou recordar. A mente jamais poderá invocar a sua própria ausência. Isto é que importa perceber. Aquilo que é manifesto no silêncio, só o silêncio pode experimentar. A atividade do pensamento é como um jogo circular de que ele próprio se alimenta. Mas há uma presença inefável que o pensamento jamais  poderá tocar. Esta presença não é um atributo mas sim o próprio Ser. É aquilo que somos e não algo que possuímos.

É por isso que o estado de "Não-Mente", a libertação não pode ser um processo gradual. O tempo só existe na mente e a mente não pode ser o instrumento que permite passar além da mente. A mente jamais poderá cooperar com a sua própria destruição. A saída deste circulo opressivo só pode ser uma resolução instantânea, um salto para além da mente. Este salto não requer nenhum "fazer", nenhum requisito é necessário cumprir. Consiste muito mais numa negação, num não agir, não fazer, não interferir (o "Wu Wei" do taoismo chinês), do que nalgum fazer, agir ou atuar positivamente. A intenção e a vontade representam o obstáculo, não o caminho.

É por ser uma coisa tão fácil e tão simples que ela parece difícil ou complicada. No entanto, uma vez mais, a dificuldade ou complicação só existe para a mente. Mas a mente não desempenha aqui qualquer papel. A mente, o ego, o pensamento, jamais poderá contactar ou experimentar a sua própria ausência. Isto é que tem de ser compreendido. Aquele estado torna-se presente quando a mente renuncia a todas as suas atividades, motivos e desejos. Sendo o nosso estado natural, ele não pode ser gerado através de esforço nem precisa de ser criado por qualquer atividade da nossa parte. Porque é preexistente a todas as nossas atividades. Não requer sequer ser conhecido ou verbalizado. Procurar conhecê-lo ou obtê-lo, é tão absurdo como um peixe andar em busca da água onde nada. É este o significado profundo do termo "Graça", algo que é  gratuito, livre de causa, que não é nenhum resultado ou objetivo. Acaso a vontade de um recém-nascido poderá ser a causa do seu ser e existir? Poderá ele ser o autor do seu próprio respirar e sentir? É o nosso esforço e a nossa vontade que faz o coração bater e o sangue circular? O que a natureza requer de nós é confiança e não resistência.

O risco que se corre ao fazer estas exposições verbais, é o de elas poderem involuntariamente intensificar a própria atividade que importa fazer cessar. As palavras fazem parecer complicado aquilo que é naturalmente simples.  Estas palavras não devem ser convertidas numa ideia a reter e aplicar. As palavras são meramente a expressão de uma realidade que está antes delas. Devem ser vistas como uma grosseira tentativa de descrição e não como uma prescrição. A claridade e lucidez não depende de palavras, símbolos ou expressão. Nada disto deve ser convertido num problema a resolver ou num esforço de compreensão. Compreender a realidade não é compreender as palavras que a procuram descrever. Nenhuma descrição é adequada, porque nenhuma descrição pode substituir o sabor da realidade. Se entrares num restaurante chinês, poderás não compreender a ementa, mas isso não te impede de usufruir plenamente da refeição. Aquilo que é real e verdadeiro não depende de conhecimento ou verbalização. A ordem da realidade não depende da ordem das palavras. Podemos falhar todas as questões dum exame de anatomia, mas entretanto o nosso metabolismo não deixará de funcionar perfeitamente. Nunca precisámos de aprender a crescer, a digerir ou a respirar. Ser e viver está além do conhecer e compreender. Uma ideia jamais poderá substituir o espírito capaz de a conceber. O conhecimento é um subproduto, um resultado. O importante é aquilo que lhe é anterior e lhe está na origem: o estado de aprender e experimentar. E este é um estado de vazio e receptividade que só se manifesta plenamente quando não há qualquer esforço ou apego, nem  luta por controlar, reter ou alcançar.

Não há solução para este dilema senão o reconhecimento da nossa impotência. A renuncia a toda a volição e esforço. Abandonar completamente todo o problema e voltar a atenção para a realidade imediata e presente, este fluir ininterrupto e espontâneo que a todo o momento se desenrola, completamente livre e alheio a quaisquer que sejam os nossos motivos, desejos ou lucubrações. "Esquecer tudo é o meio supremo", recomenda a sabedoria Zen. Abandona todos os teus pensamentos e pretensões, estabelece-te na paz e quietude do silêncio interior, e aquilo que então restar, isso é que é real.