A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






sábado, 30 de abril de 2011

Introdução

Este blogue nasce da vontade de partilhar reflexões acerca daquilo que podemos denominar Sabedoria Perene, Filosofia Advaita e Budismo Zen. Estes conceitos ou quaisquer outros serão aqui utilizados com uma função meramente instrumental ou pragmática. Não estamos a fazer ciência ou filosofia. Desde que as palavras sirvam para nos remeter àquilo de que estamos a falar é quanto basta.

Os textos aqui derramados tratam principalmente de problemas levantados pela formulação verbal ou transmissão da compreensão. Não nos ocuparemos aqui da divulgação daquelas filosofias (vamos chamar-lhes filosofias, uma vez mais, por motivos pragmáticos da comunicação). Não iremos transcrever os textos em que ela é exposta pelos mestres Zen e Advaita. Pelo menos não é esse o objetivo principal. Existem já na internet bastantes blogues temáticos que familiarizam o leitor com os seus textos e autores fundamentais. Os comentários aqui deixados irão antes girar em torno de uma questão essencial, primordial e decisiva que é o problema da comunicação daquelas filosofias, bem como problemas que têm a ver com a comunicação de modo geral.  No entanto não desejaria definir de forma muito rigorosa e antecipada a temática do que aqui se poderá encontrar. Por um lado porque desejo estar aberto e permanecer fiel à minha liberdade de pensar e escrever. Por outro lado porque não quero definir ou limitar à partida qualquer categoria específica de pessoas a quem o que escrevo possa interessar. Aquilo que escrevo diz respeito à busca da verdade, à vida e ao viver na sua dimensão humana enquanto tal.

Há algumas ideias cuja expressão mais romantizada e obscura costuma suscitar, em vez de esclarecimento, maior perplexidade e confusão. Há afirmações que fazem parecer o "despertar" ou "iluminação" qualquer coisa de transcendente e excepcional, uma experiência quase miraculosa ou sobrenatural pela qual alguns seres foram bafejados e que nós invejamos. Se assim fosse não faria qualquer sentido procurar comunicá-la, nem para nós faria qualquer sentido procurar compreendê-la. Somos seres humanos comuns que partilham da mesma humana natureza. A nossa experiência nada tem de transcendente ou sobrenatural. O mágico e o miraculoso não nos interessam.

De qualquer modo é importante ficarmos cientes de que qualquer forma de expressão verbal representa apenas uma tentativa de comunicar, uma formulação hipotética, uma possibilidade entre outras. Por isso estou dolorosamente consciente das limitações de seja o que for que aqui possa ser lido. Ao procurarmos comunicar estamos forçados a utilizar este instrumento que pela sua natureza é também o principal produtor de ilusões. A palavra, o símbolo é alheio à realidade, não é a coisa que representa. Por isso é importante ter presente um conselho dado por Misson, um filósofo desconhecido da antiga Grécia: "Indaga as palavras a partir das coisas e não as coisas a partir das palavras".

Porque razão apesar de tantos livros e mestres continuamos sem a iluminação e plenitude que procuramos? Porque razão na nossa busca por esclarecimento e compreensão nos vemos assaltados por tantas perplexidades, dúvidas e contradições? Porque razão este esforço constantemente se revela tão frustrante como a atividade de uma criança procurando ultrapassar a própria sombra que sempre se lhe adianta e escapa?

Algumas teses fundamentais poderão contribuir para elucidar a perspetiva do autor e serão desde já enunciadas:
  • Há uma contradição ou oposição inevitável entre o desejo de certeza e segurança e a própria estrutura da comunicação verbal. Nenhuma formulação verbal nos poderá transmitir a segurança que procuramos. Tudo o que o intelecto constrói, o intelecto pode destruir; 
  • O paradoxo e a contradição são inerentes àquelas filosofias sempre que procuramos comunicá-las ou pô-las em palavras, já que tratam um domínio ou dimensão da experiência que só se torna manifesto quando é transcendido o intelecto e nos livramos de todos os nomes e palavras; 
  •  Enquanto nós mesmos não tivermos um vislumbre claro, um saborear direto daquilo que o discurso da "Não-Dualidade" nos procura comunicar, e que se encontra por trás de conceitos como "iluminação" e "despertar", aquele sempre nos parecerá inconsistente, confuso e contraditório. Na geografia terrena, um mapa poderá conduzir-nos a um tesouro, mas na viagem em busca de Deus, só depois que o encontrámos é que se tornam claros para nós os mapas que o procuram indicar;
  • O discurso não tem que ser lógico, consistente, belo ou "verdadeiro". Tem é que ser eficaz em conduzir o olhar do buscador a ver aquilo para o qual pretende apontar. Não tem qualquer importância, significado ou valor intrínseco. É como um mapa que se torna inútil uma vez atingido o local que ele indicava. As palavras são apenas um dedo que aponta, como advertia Hui Neng, o sexto patriarca Zen, se te perdes a olhar para o dedo apontador, deixas de ver aquilo para o qual ele está a apontar.
  • Nunca a compreensão, o despertar ou a iluminação foram recebidos de algum livro, mestre ou guru. Essa é uma falsa impressão. Não são os livros e os mestres que produzem em nós o esclarecimento e a iluminação. Como é que os poderíamos compreender se não estivermos já iluminados e esclarecidos? As palavras dos mestres fazem apelo à nossa já inata sabedoria, à nossa inata capacidade de ver. Em diversas formas, os livros, quando são vitais e significativos, apenas podem ser uma corroboração do que nós próprios experimentamos e sentimos.
  • Os autênticos mestres Zen e Advaita, quando falam ou escrevem, mesmo em contexto pedagógico, não estão a transmitir ou comunicar aquela filosofia. Estão simplesmente a expressá-la! A sua fala e a sua escrita brotam do contacto com a realidade, não são um método ou uma receita para produzir esse contacto. O que fazem é uma descrição e não uma prescrição. A coisa está antes e não depois do símbolo e da palavra. É no descobrimento e dissipação deste equivoco que o "discípulo" ou "buscador" dá um passo decisivo na sua libertação.
  •  A condição humana é a de uma irrevogável e essencial solidão no viver e experimentar. Daí que ninguém nos possa substituir na compreensão nem nós nos podemos substituir a ninguém. Esta viagem é feita solitariamente. Mas nesta solidão existe uma riqueza e imensidão que tudo inclui.

Estas ideias irão ser expostas e expressas de diferentes modos e pontos de vista nos diversos textos deste blogue. Às vezes de forma muito condensada e sintética, e outras vezes de forma mais desdobrada e desenvolvida. Mas ao captarmos ou intuirmos a realidade que se encontra por trás das palavras e que é a fonte de onde elas brotam, sentiremos paradoxalmente aquilo que expressa um dos provérbios Zen:

 "Se estás imerso na dúvida e na confusão, todos os livros sagrados não te serão suficientes; quando o teu espírito repousa na calma da compreensão, até mesmo uma única palavra estará em excesso".
  A mesma ideia foi expressa por Shankara, o grande comentador dos Vedas da India milenar, que diz no "Viveka-Chudamani":

  "A erudição, o discurso bem-articulado, a riqueza de vocabulário e a capacidade de interpretar as escrituras, tais coisas aprazem ao erudito, mas não trazem a libertação. O estudo das escrituras será vão enquanto Brahman não tiver sido experimentado. E, depois que Brahman foi experimentado, é inútil ler as escrituras."

O autor deste blogue tem uma concepção dialética da comunicação. Isto significa que, nestas matérias, qualquer exposição verbal nunca será definitiva. O discurso tanto poderá parecer excessivo como insuficiente, correto ou equivocado, consoante a perspetiva em que se encontra o leitor. A possibilidade de divergência na interpretação está sempre presente. Daí que talvez seja necessário reformular as afirmações, negar e reafirmar, etc., à semelhança de um ladrilhador que vai cortando e ajustando uma peça até ela encaixar perfeitamente no espaço a que pertence. Mas esta perfeição não significa a expressão perfeita mas sim a compreensão perfeita. Aquela compreensão que surge quando, depois de transcendidas as palavras e os símbolos, ambos os espíritos olham na mesma direção. Por isso nalguns círculos se privilegia tanto a relação com um mestre ou guru. No contacto direto existe a possibilidade imediata de corrigir erradas interpretações para que o buscador possa ser desviado dos erros e atitudes obstaculizantes. Todos nós conhecemos já a experiência da perplexidade, da dúvida e da contradição que surgem durante a leitura de um livro. Isto advém das próprias limitações das palavras e da comunicação verbal. Nesses momentos gostaríamos de poder interpelar o autor de forma a clarificar a questão que nos perturba. Na relação com um mestre ou guru, a possibilidade desta correção está imediatamente presente. Mas o autêntico guru é aquele que se torna dispensável. O verdadeiro mestre liberta, não prende. A verdadeira ajuda, como declarou Nisargadatta Maharaj, só pode ser aquela que te coloca além da necessidade de ajuda.

É desnecessário dizer que quaisquer comentários ou sugestões serão bem vindos e merecedores de toda a atenção por parte do autor.

Junto as minhas mãos numa grata saudação.